A estrada de chão que leva ao acampamento de Sobras Lagoinha, em Sigefredo Pacheco, norte do Piauí, amanheceu obstruída com valas de quase um metro. As marcas de destruição no solo denunciavam que um trator passava por ali. Por algumas horas, ninguém de carro ou moto conseguiria passar pela estrada. Foi preciso que os próprios ocupantes reconstruíssem a via para poder trafegar entre a cidade e a comunidade. Tudo isso aconteceu em fevereiro de 2022, e ainda no mesmo mês, uma caminhonete branca com quatro homens entrou dando arrancada no terreno onde os camponeses se alojam. Os ocupantes, por outro lado, não demonstraram medo e reagiram: “Vai dizer que o dono da Lagoinha é você?”, gritou um dos camponeses contra o ataque. Após uma discussão calorosa, e mais ameaças, os homens foram embora.
Desde então, ataques contra os moradores de Sobras Lagoinha não cessaram. Edificações destruídas, cercas quebradas, tiros de arma de fogo e tentativas de retaliação tem sido o cotidiano da ocupação. “Aqui já chegou às vias de fato, só não morreu ninguém quando teve tiro porque a gente se escondeu”, conta Misael Meireles, líder dos moradores.
Há seis anos, 70 famílias – entre adultos, idosos e crianças – tiram tudo que precisam da terra: melancia, feijão, cana-de-açúcar, caju. Alguns arriscam criando animais, porcos ou galinhas e o que sobra da agricultura familiar mantida pela comunidade é vendido para apurar alguns trocados. No começo da ocupação, os moradores se organizaram para criar poços tubulares e, pouco a pouco, levantar construções edificadas. A vida pacata e silenciosa no lugar não durou muito. Dos cinco mil hectares que formam a Sobras Lagoinha, uma família de latifundiários da região têm reivindicado cerca de 20% do terreno.
É ainda por parte da mesma família que os moradores alegam terem sofrido ataques. O camponês Antônio Chaves conta que os “herdeiros” apresentaram uma documentação que não diz respeito às terras ocupadas pelos moradores. “Eles nunca fizeram a averbação dos limites da propriedade e também não sabem os limites das suas terras”, acusa. “Nem eles, nem a polícia que vem fazer o despejo”, revela Antônio. O caso tem sido apurado pela Defensoria Pública do Piauí, tendo em vista uma série de boletins de ocorrência feitos contra a latifundiária Leda Nunes Pimentel e contra um de seus filhos, conhecido como Assendino Lins de Albuquerque. Uma audiência chegou a ser marcada para o dia 27 de março, para esclarecer os limites da terra. No entanto, a pedido de Leda, a audiência foi adiada.
Misael, o líder comunitário, vive desde 2014 no Sobras Lagoinha. Depois de morar 20 anos em Brasília, comprou um terreno no lugar que hoje é a ocupação. Ele conta que viu a situação da comunidade ir ficando cada vez mais séria com as ameaças e agressões. Sem condições de ir para outro lugar, o que lhe resta é conviver com a insegurança. Mesmo com o medo instalado, ele conta que prefere chamar a Polícia Militar de Campo Maior ou Teresina – apesar da distância entre as cidades e a comunidade, que leva quase duas horas para ser percorrida. “A gente não confia na polícia daqui”, revela à reportagem. “Eles pescam e convivem na fazenda da tal família lá”, segue dizendo. “Temos vivido dias de terror”.
A reportagem tentou contato com a família citada pelos ocupantes, entretanto, não conseguiu localizar os envolvidos. O espaço permanece aberto para esclarecimentos.
Desde junho de 2019, com a Lei 13.838, que simplifica o georreferenciamento de propriedades rurais, as famílias podem sofrer grandes danos caso não saibam os limites de suas terras. Uma ação publicada pelo Supremo Tribunal Federal proibia qualquer ação de despejo até 31 de março de 2022, em razão da pandemia da Covid-19. Com o final do prazo, os moradores temem que suas casas sejam destruídas. A situação também tem sido acompanhada por movimentos sociais e por membros da Coordenação do Despejo Zero do Piauí, que cobram que autoridades não realizem o despejo. A Defensoria Pública e os movimentos sociais aguardam decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubada da liminar, pois já foi protocolado o pedido tanto no Tribunal de Justiça do Piauí, como no STF. Por enquanto, o Interpi (Instituto de Terras do Piauí) foi acionado para fazer o levantamento topográfico da área. “As famílias estão na terra que é sobra, e não na área dos proprietários”, conclui o camponês Antônio
A 165 quilômetros de Sobras Lagoinha, no Planalto Uruguai, zona Leste de Teresina, cerca de 72 famílias passam pela mesma situação dos ocupantes de Sigefredo Pacheco. O lugar, batizado de Mirante do Uruguai, é cenário da busca cotidiana das pessoas pelo direito à moradia – e contrasta com as mansões do Alphaville, um condomínio de luxo da capital. “Olha o tamanho daquela casa ali, dava pra morar todo mundo do Mirante lá dentro”, conta Eva de Sousa, uma das moradoras da ocupação. Sua casa foi recém construída com madeira e barro. As paredes ainda revelavam buracos, tampados com lona. Enquanto conversava com o oestadodopiaui.com, um rapaz instalava energia elétrica na edificação. O lugar só tem um cômodo, onde amontoam-se uma cama de casal, uma de solteiro, televisão e ventilador. Eva divide o espaço com a filha e o neto, uma criança de apenas um ano. Uma lâmpada de cor amarela tremulava dentro da casa com a chegada da luz, fazendo a felicidade das moradoras. “Chegou a luz! Vamos ser ‘feliz’, minha gente”, festejavam. O neto, que dormia calmamente no centro da cama maior, acordou com as gargalhadas da avó.
Para completar a alegria dos moradores, uma pequena caminhonete surgia na rua que dá acesso à ocupação carregada de folhas de palmeira e ripas. A chegada do material anunciava que mais edificações poderiam ser construídas. “Tudo isso é de doação, vaquinha ou ajudas que a gente recebe”, explica Leonardo do Nascimento, líder da ocupação. O material fica guardado em uma casa de aluguel, em frente ao local, que os ocupantes pagam com dinheiro de bingos e sorteios para poder custear o espaço de apoio.
Leonardo foi o primeiro a chegar no terreno, em outubro de 2021 – em menos de uma semana viu surgir mais 32 barracas. “Pessoas despejadas, outras que não podiam mais pagar aluguel, gente que não tinha onde morar, iam ocupando o lugar”, relembra. A organização não durou muito e, no dia das crianças, o lugar teve a primeira ação de despejo. Até fevereiro deste ano, os moradores já sofreram cinco “derrubadas”. Os agentes da Guarda Municipal de Teresina chegam, destroem as casas e retiram quem quer que seja das edificações. Em todas as ações, Leonardo destaca a truculência dos agentes e a falta de diálogo com a gestão.
O terreno, segundo os moradores, está abandonado há 29 anos e pertence à Prefeitura de Teresina. O matagal que tomava conta do espaço, antes da ocupação, servia de reduto para criminosos e era foco de queimadas no período mais quente do ano. Em meio às ameaças de despejo, as famílias têm cobrado o órgão pela regularização do terreno.
Quase 98 mil famílias compõem o déficit habitacional de Teresina. Segundo a PMT, neste ano, é previsto que 30 mil imóveis sejam contemplados com a regularização fundiária – na zona urbana e também rural da cidade. A gestão explica que as ações estão sendo feitas a partir do programa “Regulariza THE”, por meio do Núcleo Municipal de Regularização Fundiária (NMRF), para que famílias sem documentação de seus terrenos possam ter a titulação de imóveis. Se concluído, quase 50 mil famílias poderão ter acesso à moradia, é o que estima o órgão. Em nota encaminhada ao oestadodopiaui.com, a Eturb (Empresa Teresinense de Desenvolvimento Urbano) informou que qualquer ocupação que deseje participar do programa deve solicitar apoio – o pedido será avaliado pela Coordenação Municipal de Regularização Fundiária (CMRF) para que, assim, possam obter a titulação dos seus terrenos.
Enquanto isso, Ambrosina e Maria, amigas há uma década, lutam por um dos 72 lotes no Mirante do Uruguai. Em meio a pandemia da Covid-19, as mulheres viviam com ajuda do auxílio emergencial e dividiam as contas. “Eu pagava o aluguel e ela a água e a luz”, explica Maria. “Não sobrava quase nada”. Evangélicas, souberam da ocupação a partir do pastor da igreja que frequentam. Quando a ajuda do governo acabou, as contas apertaram e elas partiram de mala feita para o terreno, como forma de fugir do aluguel. O objetivo agora é construir uma casa no lote. “A gente não conseguiu pagar a madeira mais grossa, nossa casinha ainda tá só o esqueletinho”, conta Maria. Na esperança de conseguir uma moradia, as mulheres torcem para que não aconteça mais um despejo.
Os dados mais recentes do Piauí, levantados pela Fundação João Pinheiro em 2019, apontam que 115 mil pessoas não possuem casa própria no estado. Sem moradia, recorrem a situações precárias, casas divididas com outras famílias ou vivem de aluguel, que compromete praticamente toda a renda. Somente em Teresina, esta é a situação atual de 35 mil famílias.
Nos centro urbanos, as pessoas que recorrem às ocupações estão sujeitas a problemas de saúde e segurança pública: esgoto à céu aberto, falta de saneamento básico, acesso à água tratada e energia elétrica. A falta de políticas públicas para resolver esse problema revela outro desfecho mais dramático, que é o racismo ambiental. É o que explica a cientista social Fabíola Lemos: “Nos programas policiais, quando os ocupantes são noticiados, eles aparecem em espetáculo. A forma brutal de exposição apresenta uma justificativa para ação violenta da polícia”, destaca. “Sem debate sobre direito à moradia, essas pessoas continuam sendo estigmatizadas como sujas, preguiçosas e criminosas”, pontua Fabíola.
Nas zonas rurais, por outro lado, é a mão de ferro de grandes latifundiários e do agronegócio que pesa contra as ocupações. Na cidade de Altos, há quase dois anos 65 famílias da ocupação Grande Vitória tem se organizado em um terreno de 1.200 metros de extensão. Assim que chegaram, um latifundiário local alegou ser dono das terras. Sem apoio do poder público, a associação de moradores buscou por documentos que provassem a titulação do suposto dono. Ele nunca apresentou comprovações e, logo menos, acabou desistindo da briga. Os moradores, desde então, vivem sem muitos problemas.
Agora, o espaço é formado, em grande parte, por pessoas que moravam de aluguel e não tinham emprego na zona urbana de Altos. Uma delas é Maria do Desterro da Silva, de 22 anos. Quando soube da ocupação, se organizou com o marido e a filha de três anos para poder levantar uma casa de barro no espaço e fugir do aluguel. “A vida na cidade é muito dura”, conta. “Sem casa, de aluguel, tinha dias que não tinha como ter um cheiro-verde para botar numa comida”, conta à reportagem.
No último ano, os ocupantes da Grande Vitória consideram ter construído uma “ocupação de sucesso”. O lugar possui hortas comunitárias, poço de água e tem expandido as plantações de macaxeira, bananas, arroz e feijão. A ideia, explica o líder da comunidade, Francisco José, é poder superar a agricultura familiar e criar pequenos negócios para os ocupantes. Um dos desafios tem sido a falta de água encanada e energia elétrica. A chegada do verão tem preocupado os pequenos produtores que, mesmo com a ajuda do carro-pipa, temem não conseguir ter água suficiente para as casas e as plantações. Desde o ano passado, solicitações foram feitas à Equatorial e à Águas de Teresina. “Nossa felicidade ia ser ver água na torneira”, conta. “Mas que aqui tem gente guerreira, aqui tem”.
Nos mesmos moldes, os assentamentos Serra Branca e Serra Vermelha resistem na zona rural de São Raimundo Nonato, a 581 quilômetros ao sul de Teresina. Na região, há outros 13 assentamentos se organizando. Os locais são unidades, chamadas de lotes, destinados a famílias de agricultores sem condições econômicas de adquirir um imóvel. Vivem, entre todas as comunidades, quase mil pessoas. Por lá, tudo se tira da terra, para comer e para vender. Com energia elétrica, mas ainda precisando utilizar água de poço, eles não possuem título de posse do local. Desde 2018, a comunicação com o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) não avançou. Nem mesmo a vistoria, solicitada no mesmo período, chegou a ser realizada pelo órgão.
Fábio Ribeiro, presidente da Associação Municipal dos Agricultores e Agricultoras Familiares de São Raimundo Nonato, conta que a realidade no assentamento não é diferente dos demais 500 assentamentos distribuídos em todo o Piauí. A titularidade dos terrenos garante o fim de uma luta histórica de quem chegou no espaço há pelo menos quase três décadas e busca, no documento, uma forma de garantir o seu direito à moradia. Para as pessoas que fazem parte dos assentamentos, além de um local para morar, é possível garantir a segurança alimentar e qualidade de vida. “Quando um assentamento ou ocupação é regularizado, não se garante só a moradia”, comenta Fábio. “Mas uma série de circunstâncias que melhoram a vida dessas pessoas”, complementa. “Muita gente, se não estivesse aqui, estaria correndo risco ou passando fome”.
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