quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Um compromisso inadiável

De volta ao mapa da fome, 1/3 da população piauiense precisa sair da insegurança alimentar

10 de janeiro de 2023

Edição Luana Sena

Quando soube das notícias da pandemia da Covid-19, Izabelle Chaves, de 22 anos, precisou se desfazer da única fonte de renda: a venda de espetinhos ambulante. Sem gente na rua, com o vírus à solta, ela se viu dentro de casa com zero perspectiva de emprego. Os poucos armários da cozinha começaram a ficar sem alimentos e dar espaço para o amontoado de contas de água, luz e aluguel. “Quase três anos depois, ainda tenho contas para pagar do começo da pandemia”, relata à reportagem. E pior: “Há dias que não tenho nada para comer”.

Para driblar o desemprego, Izabelle alugou uma moto. Com o transporte, passou os últimos três anos trabalhando como entregadora de aplicativo e fazendo bicos em restaurantes. Aos finais de semana, a jovem chega a pilotar por quase oito horas, de norte a sul em Teresina, mas não consegue apurar mais que R$150. Quando há feriado ou chuva, a situação da entregadora fica dramática: “Uma vez voltei para casa com vinte reais no bolso. Tive que escolher entre botar gasolina ou comer alguma coisa”. Carregando comida nas costas, é nesses dias em que o peso da fome no estômago parece doer mais.

Enquanto os armários de Izabelle esvaziavam, o Brasil voltava ao mapa da fome. No ano passado, em setembro de 2022, o segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer. Ainda no estudo ficou comprovado que 14 milhões de novos brasileiros estão em situação de fome. Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave. A média nacional da população faminta alcançou 15,5%. No ano de 2018, antes do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tomar posse, o índice era três vezes menor: 5,8%.

Uma pesquisa anterior, feita em 2020, já dava sinais de que o Brasil começava a retroceder no combate à fome. Naquele ano, os índices apontavam que o país voltava a patamares equivalentes aos de 2004. Durante a pandemia, o flagelo da fome voltou para mais de 33 milhões de pessoas. Entre os principais fatores, a pesquisa destacou a piora no cenário econômico, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da epidemia do coronavírus como agravantes da situação.

 


No Piauí, a fome chegou para pelo menos um terço da população: 34,3% dos piauienses estavam em situação de fome, conforme dados do Inquérito Nacional. O estado é o segundo no ranking de população faminta, ficando atrás apenas de Alagoas (36,7%). Na pesquisa, a desigualdade regional persistia nos números. As regiões Norte e Nordeste representam o maior contingente populacional que não sabe o que vai comer na próxima refeição. Na outra ponta do país, em Santa Catarina, o índice beirava a 4,6%.


Sintoma da desigualdade

Paralelamente, enquanto muitos brasileiros não tinham o que comer, os números de exportação líquida de alimentos disparavam. No ano em que o Brasil voltou ao mapa da fome, as exportações atingiram bilhões de dólares (R$ 716 Bi). De janeiro a agosto de 2022, o país já havia exportado 399,5 bilhões com produtos destinados à alimentação humana e animal. No  mesmo ano, a cada um dólar importado, o país conseguiu dez dólares nas exportações. Bem diferente do final dos anos 1990, quando a relação era de um dólar para três. 

O bom desempenho no mercado exterior não chegou aos pratos brasileiros. Se o agronegócio ia bem, o poder de compra dos brasileiros, não. Uma pesquisa do Datafolha revelou que, durante a pandemia, 67% da população deixou de consumir carne. O motivo também explicava a dinâmica do mercado da carne: milho e soja, itens consumidos pelo boi durante a engorda, junto à medicação (importada de outros países), impactaram diretamente o preço da venda por quilo. Questões ligadas ao clima, como ausência de chuvas nos pastos também tornaram mais difícil o confinamento do boi. 

Inevitavelmente, a população começou a migrar da carne para o frango, do frango para os embutidos – até chegar ao ovo. Em um supermercado de Teresina, peças de carne começaram a ser protegidas com alarme antifurto. 

Nas prateleiras, carne virou artigo de luxo (Foto: Vitória Pilar)


Diferente do ritmo de exportação dos alimentos, o poder de compra dos consumidores também caía. Uma pesquisa da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) indicou que o rendimento real habitual caiu 5,1% no segundo trimestre de 2022. Comparado ao segundo trimestre de 2020, a queda representava 11%. O rendimento caía, mas os preços dos alimentos dispararam. Em relação a 2019, a média da inflação geral subiu 28%. O óleo de soja, por exemplo, chegou a ter alta de 208%, conforme dados da FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). 

No país que mais exporta alimento, pessoas precisaram ir para semáforos pedir dinheiro para comprar comida. Em Teresina, Maria Conceição Alencar carrega diariamente uma placa pedindo ajuda para se alimentar. Desde 2019, ela perdeu a casa para as chuvas. Sem teto, nem emprego, restou a rua para garantir uma única refeição por dia. São pessoas como Maria Conceição que fizeram parte do discurso do presidente Lula (PT), durante cerimônia de posse no dia 1° de janeiro: “Trabalhadores e trabalhadoras desempregados, exibindo papelão com uma frase que envergonha a todos: ‘por favor, me ajuda’”.

 

Maria da Conceição: “Quero poder ser gente de novo, quero ter casa e comida” (Foto: Vitória Pilar)

O combate à fome foi a tônica da campanha do presidente Lula. Durante a primeira reunião ministerial do governo, o presidente apontou “obsessão” em acabar com a fome. Tarefa difícil. No Brasil que Lula herdou, 46% das crianças menores de 14 anos estão abaixo da linha da pobreza. O número cresceu em menos de um ano, quando, em 2020, o índice chegava a 39% (o menor nível histórico), segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Urgência inadiável

Os números apontam que o dilema da fome se espalhou, sobretudo no ano passado, com o vaivém do auxílio emergencial pago pelo governo. A falta de segurança financeira expôs os brasileiros à fome, déficit habitacional e menor poder de compra. Uma das principais apostas para o terceiro governo de Lula está concentrada nos esforços do Ministério do Desenvolvimento Social, responsável pela reformulação do Bolsa Família – principal programa de transferência de renda do governo federal, que durante a gestão de Bolsonaro passou a se chamar Auxílio Brasil.

Uma das primeiras ações anunciadas por Wellington Dias, o novo ministro do Desenvolvimento Social, foi a instauração da busca ativa para identificar as pessoas que estão fora do Bolsa Família. O Piauí será o primeiro estado no rastreio para recadastramento das famílias beneficiárias do Bolsa Família, por meio da atualização do Cadastro Único – programa do Governo Federal que rastreia famílias em situação de extrema pobreza. 

Isso porque o Piauí tem a maior proporção de domicílios dependentes do programa social no país. Em 2022, 266 mil residências no estado possuíam moradores que receberam o benefício. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizada pelo IBGE, mostram que a taxa do Piauí (25,8%) é cerca de três vezes maior que a brasileira: no país, apenas 8,6% dos domicílios tiveram rendimentos provenientes do Bolsa Família em 2021.

 


Regina Sousa (PT), atual secretária de Assistência Social do Piauí, informou à reportagem que a atualização do cadastro deve servir para uma “varredura” completa dos usuários. Pois desde o cadastro para o auxílio emergencial em 2020, pessoas que estavam fora do perfil para receber o benefício foram gratificadas de forma irregular. Em todo Brasil, segundo Regina, 79 mil militares estão cadastrados no sistema. “É preciso um estudo de perfil individual do cadastro”, ressaltou a ex-governadora. “Essa ação vai possibilitar que as pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza possam ter segurança alimentar”, finalizou. 

Em Teresina, onde se concentra a maior população de rua do estado, uma das tentativas de aplacar o problema da insegurança alimentar é o Restaurante Popular. Diariamente, são oferecidas 1.200 refeições. Segundo a Secretaria de Estado da Assistência Social, Trabalho e Direitos Humanos (Sasc), a procura pelo espaço teve disparada em 2020, quando o aumento de preços dos alimentos da cesta básica fez mais pessoas recorrerem às refeições, servidas por R$2.

Ao todo, a capital possui quatro restaurantes populares. O Restaurante Popular da Universidade Estadual do Piauí (Uespi), o Restaurante Popular do Dirceu, na zona Sudeste, e o Restaurante Popular Betinho, no Centro, todos administrados pela Sasc. O maior deles, Betinho, fornece 27.500 refeições por mês.

A Semcaspi explica que tem realizado um rastreio de famílias carentes por meio dos serviços e programas ofertados pela Prefeitura de Teresina. Pessoas cadastradas pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) são assistidas com cestas básicas. Para descentralizar as ações na capital, o órgão tem realizado edições do programa Teresina Cuida de Você em regiões periféricas da capital. Durante os eventos, a população, independentemente do cadastro no Cras, recebe cestas básicas e serviços de saúde. Até o fechamento da reportagem, a Semcaspi não detalhou quantas famílias são assistidas com os alimentos. 

Iniciativas privadas também se articulam para conter o avanço da fome em diferentes setores da cidade. Uma delas é promovida pelo Banco de Alimentos da Central de Abastecimento no Piauí (Nova Ceasa). O projeto recolhe frutas, verduras, legumes e cereais que seriam descartados por feirantes na cidade e os entrega para 25 entidades que atendem crianças e famílias na periferia da capital. Desde a criação do Banco, em 2018, quase 550 toneladas de alimentos foram  selecionadas e processadas para doação. 

Leia mais: Instrumento que rastreia famílias de baixa renda incluídas em programas sociais passará por varredura para eliminar irregularidades

Enquanto o Brasil – e o Piauí – reerguem os eixos para sair do mapa da fome, Maria Conceição e Izabelle atravessam os dias em Teresina sem saber o que vão comer. “A gente precisa de um país que volte a tratar as pessoas como gente. Gente precisa comer, precisa trabalhar, precisa ser tratado como ser humano”, declara a entregadora. “Desse jeito eu não vivo, só sobrevivo”, complementa Maria Conceição. “Quero poder ser gente de novo, quero ter casa e comida”. 

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Categorias: Especial

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