Dormir em calçadas, praças ou abrigos improvisados, enfrentar constantes exposições ao calor, chuva e outras condições climáticas adversas. Sem ter um endereço fixo, lidar com dificuldades para encontrar emprego e garantir acesso regular à alimentação em meio a um ciclo de pobreza que torna a vida extremamente desafiadora. Em resposta a essa realidade, o Piauí aprovou duas leis com o objetivo de melhorar as condições de vida das pessoas em situação de rua e em vulnerabilidade social. Além disso, as leis buscam tornar o estado mais acessível a todos os cidadãos, estabelecendo uma arquitetura projetada para acolher quem habita o espaço urbano.
Arquitetura mais inclusiva
Em meio às ruas agitadas e edifícios, existe uma realidade implacável e muitas vezes negligenciada: a ausência de uma arquitetura verdadeiramente amigável aos cidadãos. Por trás das fachadas e dos espaços urbanos aparentemente convidativos, encontramos uma face violenta que impacta diretamente a vida das pessoas. A arquitetura hostil pode assumir muitas formas, desde elementos sutis até características marcantes. Nas ruas, as calçadas estreitas e mal conservadas se tornam verdadeiros campos minados para os pedestres, onde cada passo é uma ameaça em potencial. Esses caminhos perigosos não apenas dificultam a mobilidade, mas também expõem os cidadãos a riscos de acidentes e lesões.
Para combater essa realidade, no dia 2 de junho entrou em vigor a Lei Nº 8.060/2023, que proíbe o uso de “intervenções hostis” nos espaços públicos. Essa medida, publicada pelo Diário Oficial do Estado (DOE), visa combater a prática conhecida como “arquitetura hostil”. A coordenadora do Processo de Reabilitação do centro de Teresina, Constance Jacob, explica que esse tipo de arquitetura tem como intenção limitar o acesso e a presença de pessoas na cidade. “A arquitetura hostil é caracterizada pela utilização de elementos arquitetônicos que visam afastar ou impedir a presença e o acesso de determinados grupos de pessoas em espaços urbanos”.
A lei descreve uma série de elementos que são considerados “intervenções hostis”, como a aplicação de espetos e pinos metálicos pontiagudos, pavimentações irregulares, plataformas inclinadas, pedras ásperas e pontiagudas, bancos sem encosto, ondulados ou com divisórias, entre outros. Para Constance, a utilização dessas intervenções são formas de controle do espaço público. “As autoridades podem instalar assentos desconfortáveis ou cercas para evitar que as pessoas durmam ou se reúnam em áreas públicas. Empresas podem usar superfícies ásperas ou molhadas para evitar que pessoas descansem em suas propriedades […] Esses elementos podem causar desconforto físico, aumento do medo e da insegurança e diminuição da acessibilidade e da inclusão social”, relata.
A nova legislação estabelece restrições sobre a aplicação dessas intervenções em diversas áreas de uso público, como ruas, calçadas, canteiros, ilhas de sistemas viários, praças, jardins e estacionamentos, entre outros. De acordo com Constance, a arquitetura hostil cria barreiras para a mobilidade de grupos em estado de vulnerabilidade. “São geralmente os mais vulneráveis e marginalizados da sociedade, como pessoas em situação de rua, jovens e idosos. Esses grupos podem ter dificuldades para acessar determinados espaços ou enfrentar barreiras físicas que limitam a sua mobilidade”, afirma.
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A falta de acessibilidade é outro aspecto que contribui para a violência da arquitetura hostil. Outros grupos que também podem ser severamente afetados pelas intervenções hostis são as pessoas com deficiências. A presidente da Associação dos Cadeirantes do Município de Teresina (Ascamte), Silvana Miranda, explica que essas intervenções hostis dificultam a locomoção de pessoas usuárias de cadeiras de rodas da capital. “Transitar nas ruas de Teresina, para um cadeirante é uma aventura e requer muita atenção. Encontramos em nosso caminho muitos empecilhos que podem causar sérios acidentes, com calçadas inclinadas demais, as grelhas nos esgotos que engancham os pneus da cadeira, enfim, são coisas desnecessárias que dificultam a circulação da pessoa com deficiência”, ressalta.
Essas barreiras físicas limitam o direito básico de ir e vir, impedindo o acesso a serviços, comércios, locais de trabalho, lazer e outras atividades essenciais. Para Silvana, a arquitetura hostil impõe desafios que complicam a vida de pessoas com deficiência nas cidades. “As intervenções hostis que encontramos no dia a dia nos obrigam, muitas vezes, a delegar tarefas que seriam simples de cumprir, porém, esses obstáculos nos impedem”, comenta.
Observatório
Cada grupo em vulnerabilidade social possui desafios específicos e enfrenta diferentes formas de exclusão, discriminação e dificuldades socioeconômicas. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de pessoas em situação de rua no Brasil ultrapassou 281 mil em 2022, representando um aumento de 38% desde 2019. No Piauí, é desafiador ter uma avaliação precisa da quantidade e do perfil dessas pessoas. Para solucionar esse problema e obter um melhor entendimento da realidade enfrentada pela população em situação de rua, entrou em vigor a Lei Nº 8.062/2023, que estabelece a criação do Observatório sobre Políticas Públicas para a População em Situação de Rua. A iniciativa propõe o acompanhamento desse grupo social e o desenvolvimento de políticas públicas para a área.
O gerente de Proteção Social Especial de Média Complexidade da Sasc, Ananias Cruz, destaca a importância desse observatório para quantificar e compreender o perfil das pessoas em situação de rua no estado. “O Observatório tem como objetivo monitorar, observar e ter controle sobre o número de pessoas atualmente em situação de rua no Piauí. […] São necessárias estratégias para atender a esse público, e isso só é possível com a intervenção governamental baseada no conhecimento de quem são essas pessoas, onde estão e quais são suas necessidades imediatas”, explica.
Entre outras atividades a serem desempenhadas por esse Observatório, Ananias explica que ele visa identificar, quantificar e qualificar as pessoas em situação de rua, além de investigar seu histórico de vida e coletar informações sobre seus familiares. “A política pública atual requer que sejamos capazes não apenas de identificar e notificar, mas também de encaminhar e acompanhar a população que muitas vezes se encontra em situação de vulnerabilidade. Nesse sentido, o Observatório sobre Políticas Públicas para a População em Situação de Rua tem como objetivo direcionar-se para essa população, a fim de realizar a identificação, quantificação e qualificação dessas pessoas, além de investigar seu histórico de vida e até mesmo levantar informações sobre seus familiares”, afirma.
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Ananias enfatiza que as pessoas em situação de rua são cidadãos que merecem receber cuidados e ter acesso aos serviços públicos. “A importância desse observatório na promoção das políticas públicas é trazer essa dimensão humana, cidadã e garantir que mesmo em situação de extrema pobreza, eles tenham acesso às políticas públicas direcionadas a eles. […] O fato de estarem na rua não os exclui como cidadãos. A cidadania pode ser exercida mesmo nesse espaço, com acesso a cuidados médicos e atendimento de suas necessidades físicas e alimentares”, comenta.
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