sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O mundo pós-pandemia

Como a pandemia provocada pela Covid-19 está mudando nossos hábitos e a forma como nos relacionamos com os espaços

16 de junho de 2021

A cena se tornou comum na fachada de qualquer condomínio residencial: uma fila de motoqueiros se forma e uma quantidade expressiva de homens com mochilas quadradas nas costas se aglomera na portaria. São entregadores responsáveis pelo delivery de comidas, serviço que cresceu 149% durante a pandemia. 

Em edifícios com guaritas elevadas – aquelas cujo porteiro observa de cima aquele que chega e toca o interfone – o improviso para entregas de encomendas “sem contato” gera uma cena curiosa: uma cestinha alçada por uma corda é lançada da janela para que o entregador, lá embaixo, deposite nela o pacote que deseja entregar. Do alto de sua torre, o porteiro pesca a encomenda tal qual um pescador puxa um anzol. De máscaras e distantes, os dois se despedem e a vida segue em seu “novo normal”.

Em Teresina, alguns condomínios residenciais adotaram regras para limitar o acesso de pessoas em seu interior, visando um controle mínimo da circulação do coronavírus. “Antes mesmo da pandemia os entregadores de delivery não podiam entrar”, diz Georgia Belém, advogada e professora, moradora de um condomínio na zona Leste da cidade. “Só é autorizada a entrada de grandes encomendas (móveis, eletrodomésticos, etc) e prestadores de serviço”, completa. “Então, os entregadores ficam lá na porta, do lado de fora, esperando que o morador vá até lá pra receber o pedido”.

Cercadinhos para entregadores ganhou espaço de higienização nos condomínios. (Foto: reprodução)

Os finais de semana, período em que a demanda por entregas aumenta consideravelmente, chegam a ser de tumulto na entrada do prédio, que tem 336 apartamentos e apenas uma portaria. Outra cena que passou a fazer parte do cotidiano de quem mora em condomínio são as sapatarias em corredores de acesso aos apartamentos – preocupados com a contaminação, moradores passaram a deixar calçados do lado de fora da casa. 

No condomínio de Rafael Lustosa, no bairro Ilhotas, 252 apartamentos dividem uma portaria eletrônica, instalada já durante a pandemia. Através de um aplicativo no próprio celular, o morador pode acionar a entrada de pessoas – mas há uma espécie de cercadinho entre duas grades, onde entregadores podem esperar a liberação do acesso. “Durante a pandemia uma mesa foi instalada com álcool em gel para higienização das mãos e das sacolas”, explicou o morador.

Dispenser de álcool em gel, item que até pouco tempo era comum apenas em corredores de hospitais, por exemplo, passou a integrar a paisagem dos mais variados ambientes – escolas, empresas e até transporte público passaram a adotar o item como forma de oferecer álcool 70% para higienização das mãos – única medida cientificamente comprovada, além do uso de máscara e distanciamento, capaz de conter a propagação do vírus. 

Mesmo com a vacinação se alastrando em campanhas de imunização pelo país, algumas das transformações que moldaram a realidade à nossa volta até aqui começam a dar pistas de que chegaram mesmo para ficar – com 24,93% da população brasileira vacinada com a primeira dose, os cuidados sanitários devem ser mantidos no cotidiano das cidades até que se atinja o número necessário de pessoas vacinadas capaz de barrar a circulação do vírus. Além do mais, especialistas já alertaram sobre a onda de variantes que vai garantir a presença do coronavírus entre nós. 

Muitos dessas mudanças já haviam sido comentadas pelo biólogo Átila Iamarino, doutor em microbiologia pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pela Universidade de Yale, que ficou conhecido pelo seu canal de divulgação científica no Youtube. “O mundo mudou, e aquele mundo (de antes do coronavírus) não existe mais”, afirmou. “Mudanças que levaríamos décadas para passar, que a gente levaria muito tempo para implementar voluntariamente, a gente está tendo que implementar no susto, em questão de meses”.

Impacto na arquitetura

A pandemia provocada pela Covid-19 está modificando a dinâmica do mundo. Uma das transformações mais notáveis ocorre na arquitetura e urbanismo das cidades, e deve acontecer para atender as necessidades do novo contexto cultural, uma vez que o ritmo de uma sociedade é refletido em suas habitações. O que era comum em locais coletivos como restaurantes, parques, bares, teatros e cinemas vai ganhando novos moldes. A crise sanitária estabeleceu uma nova ordem de uso em espaços públicos e privados. Mas como essas alterações irão impactar na vida das pessoas?

A volta do uso de espaços coletivos começa a ser pensada em novos formatos (Foto: reprodução)

“No pós-pandemia teremos maior cuidado em fazer eventos em espaços mais abertos”, observa o arquiteto Anderson Mourão. “Isso a gente não sabe como vai acontecer de uma forma segura, mas acredito que espaços abertos irão ganhar vez nesse novo momento”. 

Em países onde o convívio social vem sendo, aos poucos, restabelecido, algumas medidas estão sendo implementadas para a segurança das pessoas e podem ditar os novos padrões de vida coletiva. Ambientes internos de bares e restaurantes, por exemplo, ganham barreiras ou cortinas transparentes entre mesas e espaços de estar. “A gente fala da privacidade, mas também da própria segurança”, diz Anderson Mourão. 

Novo convívio social passará por modificações. (Foto: reprodução)

O desafio de arquitetos e profissionais do designer de interiores, agora, pode ser priorizar higiene e segurança sanitária para além do conforto e beleza das edificações. “A utilização de ventilação e iluminação natural serão as principais mudanças daqui para a frente”, aposta o arquiteto. 

O uso da tecnologia será potencializado, a presença de criatividade no uso de materiais para construção e a integração com espaços verdes será cada vez mais comum. Se antes a solução para os espaços era pensada em aproveitamento máximo de cada cantinho, a pandemia pode ser fator de uma mudança cultural focada no consumo. 

Os espaços fechados e climatizados artificialmente podem dar vez ao encontro com o natural. “Com a pandemia se viu essa necessidade de retornar ao uso do elemento natural para o conforto”, comenta Anderson. “Elementos como o paisagismo, vegetação, iluminação e ventilação natural serão utilizados nos espaços de modo mais racional”, aposta. 

O futuro é coletivo e ao ar livre?

Bruno Alcoforado, doutor em microbiologia, diz que o pós-pandemia irá depender do preparo que teremos hoje em ações individuais e comunitárias. Exercitar o pensamento coletivo, pensar no outro como nossa família e amigos será essencial.  “O preparo depende não só da população, não só do governo, mas também de empresas e construções”, apontou. “Aí entra o investimento na saúde pública, nos laboratórios, mas também nas edificações”.  

Para as construções, por exemplo, é necessário pensar em novas possibilidades. O foco em um futuro mais harmonioso com a natureza e mais seguro para todos passa, por exemplo, na urgência em viabilizar espaços para ciclistas e pedestres, se tornando uma alternativa para uso do espaço público. Para Anderson Mourão, é necessário pensar em um novo estilo de vida, que priorize o contato com a natureza e o uso de ambientes externos, evitando lugares fechados.  

Recapitulando o passado, ele diz que lugares de entretenimento coletivo e uso público, como praças e parques, estavam cedendo espaço para shoppings e comércio. O carro particular em detrimento do ônibus. “Hoje a mobilidade ativa é fundamental para se pensar a redução de aglomeração”, defende o arquiteto Anderson Mourão. Para ele, os espaços públicos serão mais valorizados pelo conforto em ventilação e distanciamento social. 

Alterações no modo de vida, é claro, refletem na necessidade das pessoas em relação a seus espaços – e isso pode gerar uma onda de transformações também nas demandas por profissionais na área de projetos arquitetônicos e de interiores. Com o home office e a modificação no uso das casas – antes destinadas a uso doméstico ou lazer – os profissionais devem estar atentos a materiais e soluções que atendam aos novos objetivos. “Mais atenção aos materiais que proporcionem conforto térmico para poder abrir janelas em ambientes comerciais e em residências, por exemplo, é pensar em proporcionar conforto”, pontua Anderson. 

Medidas sanitárias: o desafio social

A pandemia trouxe uma permanente preocupação para a vida da população mundial. Uma nova cultura sanitária está sendo constituída em relação à proteção contra a infecção ou reinfecção pelo novo coronavírus. “São medidas que deverão ser mantidas por longo tempo, mesmo após a vacinação”, afirma o professor Narcizo Chagas, que é mestre em educação e tecnologia e foi coordenador estadual de educação permanente em saúde, dando apoio técnico a secretarias municipais de saúde no Piauí. 

Ele afirma que o fato de as vacinas não terem 100% de eficácia contra o vírus torna real a necessidade da manutenção das medidas sanitárias. “Esse será o grande desafio social para o futuro”, observa. “Isso tem colocado em cheque a compreensão das pessoas de que após serem vacinadas elas poderão deixar de seguir as medidas, o que não é verdade”, analisa. “Pensando pelo ponto de vista social, econômico e cultural, fica evidente que aquela normalidade vivenciada antes da pandemia tende a não retornar. A verdade é que nós não iremos abandonar esses novos hábitos de autoproteção”, detalha.

O professor também cita que a pandemia trouxe, além da crise sanitária, grande impacto social e econômico. “Vivemos uma época de incertezas”, diz, enfatizando que os novos comportamentos e a instabilidade econômica também continuarão por muito tempo em evidência. “Acredito que só após a aprovação de uma medicação com 100% de eficácia no tratamento contra a Covid-19 a humanidade poderá se despreocupar”, afirma. 

Narcizo reforça o papel das lideranças na conscientização da população. “Eu vejo a necessidade da manutenção dos cuidados de proteção e a continuidade das pesquisas”, afirmou. “Além disso, vejo a importância da compreensão por parte das nossas lideranças políticas, sociais e empresariais sobre a importância das medidas, pois a população se espelha nesses líderes e é importante que eles se tornem exemplos”, pontua. “A pandemia é uma realidade que ainda teremos por muito tempo”.

Faxina e tecnologia

Com as novas demandas de serviços, a pandemia mostra seu impacto também no mercado. Para continuar existindo, muitas empresas mudaram a forma como funcionavam ou mesmo outras surgiram com novas ofertas de serviços.  

Em Teresina, um dos serviços que crescem na atualidade está associado à sanitização e desinfecção dos ambientes. A Faz, por exemplo, é uma empresa nova criada pelo grupo Servfaz, já na pandemia, para atuar exatamente no ramo de limpeza, além de jardinagem, portaria e recepção em serviços terceirizados.

FIP: tecnologia aliada a higienização dos espaços. (Foto: arquivo pessoal)

Com a alta demanda de serviços de higienização e desinfecção de ambientes, a empresa está sendo frequentemente mais procurada por bares, restaurantes e academias que voltaram a funcionar após os decretos.

A tecnologia passou a ser aliada a eficácia desses novos serviços. Por meio de parceria com a startup Aurratech, a empresa faz uso de uma tecnologia FIP que permite a desinfecção de ambientes através de névoa seca com nanopartículas de sanitizantes – segundo a empresa, elas eliminam 100% de vírus, microorganismos e bactérias presentes em ambientes e superfícies, promovendo descontaminação atóxica e segura.

 

Pós-pandemia? Quando?

Os cuidados com a saúde permanecerão em alta, mesmo no futuro pós-pandemia. Com os espaços de grande circulação de pessoas voltando a funcionar em sua normalidade, a preocupação com limpeza e higiene desses ambientes deve permanecer por muito tempo na pauta do dia. 

Em Teresina, com a vacinação de trabalhadores da educação, a rede municipal de ensino – que hoje conta com 99 mil estudantes – já anunciou o retorno das aulas presenciais para o segundo semestre deste ano – a volta deve ser em formato híbrido, priorizando turmas de jovens e adultos – crianças devem permanecer em casa assistindo às aulas de forma online.

A secretaria municipal de educação criou um comitê para auxiliar no gerenciamento do retorno às aulas. Sua função é revisar e atualizar o protocolo de segurança sanitária exigido. Para Kleytton Nunes, professor e secretário executivo de ensino, o avanço da vacinação entre os profissionais da área permite uma visão otimista para o retorno. “A medida que formos percebendo uma evolução no grau de vacinação e redução dos casos de Covid, progressivamente vamos ampliando os públicos a serem atendidos dentro da escola”, afirmou.

 

Salas de aula e ambientes de aglomeração terão que passar por mudanças. (Foto: reprodução)

Com altas temperaturas o ano inteiro, teresinenses aprenderam a ver em aparelhos de ar condicionado uma benção para driblar o calor – as salas de aula climatizadas, no entanto, podem ser verdadeiros antros de contaminação da Covid-19, já que estudos da China comprovaram a infecção de pessoas que permaneceram no mesmo ambiente fechado e climatizado por algum tempo. 

O verdadeiro vilão da história não é exatamente o ar-condicionado, mas sim o confinamento coletivo – seu uso prolongado em espaços fechados e com nenhuma circulação de ar, além de pessoas respirando próximas umas das outras, pode ser o prato cheio para a proliferação do vírus. Entre as mudanças previstas para as escolas, a secretaria promete manutenção mais constante na limpeza desses aparelhos. 

sexta-feira, 22 de novembro de 2024
Categorias: Reportagem

Geysa Silva

Jornalista, consultora de marketing político e especial Experiência Piauí.

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