sexta-feira, 3 de maio de 2024

“Seria o dia mais feliz da minha vida”

Na UFPI, pesquisadora se torna alvo de ataques de ódio após defesa da dissertação de mestrado

06 de março de 2023

Na última segunda-feira (3), Luara Dias se preparava para realizar um sonho: se tornar mestra em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). O que estava previsto para ser o melhor dia da sua vida, acabou se tornando um pesadelo. Sua pesquisa, intitulada “Sapatonas Caminhoneiras Negras e o Mercado de Trabalho como um Desafio”, virou alvo de ataques de ódio em uma página no Instagram. Vítima de episódio semelhante anos atrás, quando concorreu ao cargo de vereadora na Câmara Municipal de Teresina, Luara Dias explica que não registrou boletim de ocorrência denunciando as mensagens de ódio. Pelas redes sociais, ela segue divulgando sua pesquisa para que o tema chegue a mais pessoas. “Querem ditar o que vai ser pesquisado, ou o que pode ser pesquisado, mas não querem pesquisar”, conta à reportagem. “A minha pesquisa não será diminuída. Eu sou livre para pesquisar e ser quem sou”. 

Luara Dias em depoimento à repórter Vitória Pilar:

“Eu sempre soube que havia algo de diferente em mim. Era diferente quando as minhas amigas falavam dos seus interesses e eu percebia que não era nada do que eu achava. Naquela época, a internet não era tão fácil para a gente entender mais sobre si mesma. Precisei conhecer outras pessoas, fora da minha bolha (galera da escola), para entender mais sobre minha sexualidade. Precisei conhecer gente de fora para entender que eu era uma mulher lésbica, mas não entendi isso tardiamete. Eu sabia, ainda adolescente, que eu não era hétero. 

Era confuso porque na minha cabeça, em um mundo com pouca informação, ser lésbica era viver o esteriótipo da “sapatão” – aquela mulher do cabelo curtinho, quase raspado, que usa roupas masculinas. Eu não era assim, nem me enxergava assim. Eu só me sentia atraída por meninas. Em Teresina não tinha muitos lugares para pessoas LGBTQIA+, mas foi quando conheci um lugar bem frequentado pela comunidade, e vi por lá mulheres com cabelos, roupas e se expressando de várias formas. Só assim eu consegui ver que eu podia ser do jeito que eu quisesse. Eu era uma mulher, era uma mulher lésbica, sem rótulo e nem caixinhas. 

Me formei em Assistência Social, também pela UFPI. Vim de uma família de professoras, onde ter doutorado, mestrado e uma carreira acadêmica era algo que inspirava a todas. Isso me influenciou a fazer o mestrado. Na época em que concorria à seleção, o ex-presidente Jair Bolsonaro tinha acabado de se eleger. Foi um período complicado: incertezas sobre a comunidade acadêmica, sobre os direitos humanos, sobre qualquer expressão de segurança às mulheres – e claro, às mulheres da comunidade LGBTQIA +. Motivada por esses desafios, cada vez mais fui me aprofundando em diálogos sobre o panorama das mulheres lésbicas em Teresina, no Piauí e no Brasil. Foi dentro desses diálogos que minha vida passou por dois starts: ingressar no programa de pós-graduação de Políticas Públicas, para tentar entender melhor sobre nossos direitos e compreender que, mesmo lésbicas, a depender da raça e da classe, nossas violências e vivências possuem muitas diferenças 

Nossos diálogos eram sobre assédios, preconceitos e dificuldades na sociedade. Mas enquanto as mulheres brancas falam sobre dificuldades de se manter nos empregos, as mulheres negras e sapatonas nem conseguem arranjar. Comecei a perceber que eu sempre chegava no lugar procurando pessoas como eu para me sentir à vontade, mas eu nunca via aquela mulher negra, a caminhoneira, nos lugares que eu mulher branca frequentava. Eu as via em lugares muito subalternizados: vendendo bombom na frente da parada de ônibus, fazendo limpeza de lugares públicos, se abrigando debaixo das pontes. Quando ingressei no mestrado, não tinha outra opção: eu queria entender porque esses corpos específicos não possuem políticas também específicas.  

Inicialmente, eu pensei que pudesse fazer isso no mestrado de Sociologia. Não são todos os programas que possuem estudos sobre interseccionalidade. Em 2023, agora, o (mestrado) de Políticas Públicas possui uma linha de Raça e Gênero – mas em 2020, quando eu ingressei, não tinha.

Não foram anos fáceis. Como era a primeira vez que um trabalho como o meu era submetido, fiquei com receio. Tinha medo de tudo: de não ser compreendida e, pior, sofrer lesbofobia. Tive muito apoio da minha orientadora, a professora Elaine Nascimento – ela me acolheu muito. Isso fez a caminhada ser menos dura. Ela, assim como eu, é também uma mulher lésbica. 

Passados dois anos de pesquisa, veio o fatídico dia. Era para ser o dia mais feliz da minha vida. Como toda pesquisa em universidade pública, as defesas também são públicas, qualquer pessoa pode assistir. A página do programa fez um convite aberto para incentivar e, a partir disso, tudo começou: um perfil no instagram, de uma página que se autodefine como uma mídia com valores da direita, publicou o convite e questionou na legenda: “O que vocês acham disso?”. A gente sabe o que uma pessoa preconceituosa pensa. Eu já tinha feito a defesa, tinha sido aprovada e já estava comemorando, quando comecei a receber enxurradas de comentários de ódio. 

Não parei de receber prints e mensagens. Seguidores dessa página começaram a me chamar de aberração, diziam que a minha pesquisa era um lixo, muitos ataques a mim e à universidade. A maioria, confesso, apaguei e bloqueei assim que li a mensagem. Não queria absorver aquela energia ruim, não era justo estragar o meu momento. Eles queriam apenas criticar, sem nem ao menos ler o trabalho. Queriam atacar a universidade, o programa, mas também atacaram minha dissertação e atacam a mim. Me apeguei ao real: as pessoas que eu admiro e gosto estavam ali comigo. O resto era deixar para lá. 

Mesmo tentando ignorar, aquilo me abateu. Fiquei a semana com a imunidade baixa: seja pela apreensão da defesa, como também pelos ataques, no meio da minha comemoração. A minha vida inteira eu venho dando o máximo. Em algum momento, o medo também me encontrou. Decidi que não iria abaixar minha cabeça. Durante a semana, eu fiz uma live. Foi quase como uma nova defesa. Eu queria falar da minha pesquisa, queria falar daquilo que me importava. Depois disso, recebi muito apoio. As pessoas que importam entendiam a importância do que eu estava fazendo.

Receber um ataque massivo de ódio nunca é bom, mas é preciso saber que essas pessoas existem. Durante 2018, eu concorri ao cargo de vereadora. Fiz uma campanha LGBTQIA+ e também recebi ataques por isso. Estar nesse lugar incomoda muita gente e é por isso que fazemos isso. Nessa onda de ódio eu percebi que os xingamentos eram feitos por pessoas que nunca estiveram no lugar da produção da ciência. Eles fazem e incitam uma política repressiva. Eu não quero isso. Eu quero que mais pessoas continuem a pesquisar para que esse assunto não se esgote. A minha pesquisa não será diminuída. Eu sou livre para pesquisar e ser quem sou.

sexta-feira, 3 de maio de 2024
Categorias: Reportagem

1 comentário

Mary Nascimento · 6 de março de 2023 às 16:16

Ainda me choca essa sociedade hipócrita se posicionar dessa forma, não evolui no pensamento dessa corja, não sou lésbica, mas sempre transitei em vários grupos de gênero, raças, posições sóciais, e nada mudou. Aqui todo meu apoio a Luara, a ciência, a ufpi , vocês que alimentam ódio são muito infelizes, nem lamentar consigo, repito aqui luara não se deixar abater , isso que eles querem, entre novamente para concorrer a câmara , eles passaram , suas ideias ações não.

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