Amanda Teixeira menstruou pela primeira vez aos 12 anos. Por morar perto do colégio, voltava para casa caminhando após o fim das aulas do dia. Quem viu a calça suja de sangue foi sua mãe, quando a adolescente tirou a jaqueta amarrada na cintura. “Ela viu e disse que achava que eu tinha menstruado. Então, corri para o banheiro para ver e foi nessa hora que comecei a chorar”, relembra. O choro foi porque achava que ainda não era a hora. “Embora eu quisesse muito menstruar porque isso já tinha acontecido com a metade das minhas amigas, na hora que veio foi uma surpresa realmente”, relembra.
Apesar da surpresa, a adolescente teve todo o suporte da mãe e da irmã. “Desde o começo, elas me explicaram o que estava acontecendo, como poderia conter o fluxo menstrual e que eu poderia sentir cólica e indisposição durante o período menstrual”, explica. As orientações recebidas por Amanda não são uma realidade para a maioria das pessoas que menstruam no Brasil – que, muitas vezes, não têm acesso a informações e, muito menos, ao absorvente, item básico para conter o fluxo menstrual.
Uma pesquisa encomendada pela Always, fabricante de absorventes no Brasil, aponta que a falta de acesso a absorventes causa evasão escolar. A consulta foi entre mulheres de 16 a 29 anos. Uma em cada quatro delas já faltou a aula por não poder comprar absorvente e 45% delas acreditam que isso impactou negativamente seu rendimento escolar. Os dados chamam atenção para um assunto que deveria ser discutido dentro da esfera da saúde pública e que está fortemente ligado à desigualdade de gênero: a pobreza menstrual, conceito utilizado para falar sobre a falta de acesso a produtos menstruais, à informação sobre menstruação e às condições necessárias para um manejo da higiene menstrual adequado.
Sem condições de comprar o produto, 50% dessas mulheres substituem o uso do absorvente por alternativas prejudiciais como o papel higiênico, roupa velha e toalha de papel. Para pessoas de baixa renda, tecidos são o item mais usado nessa substituição. “O perigo de substituir o absorvente por produtos inadequados é principalmente a inflamação e a infecção na região genital”, alerta Tatiana Melo, enfermeira obstetra que atua na área de saúde da mulher. “No caso do tecido, ele não absorve bem e, se não for lavado e higienizado de forma adequada, pode trazer contaminação”, adverte. Ela também observa que o papel higiênico não é adequado, pois ele se desintegra em contato com o sangue e pode trazer infecção na região genital.
Por conta da falta de acesso à educação e saúde, o relatório “Livre para Menstruar”, realizado pelo Grupo Girl UP, estima que pelo menos 500 milhões de meninas e mulheres no mundo não dispõem de instalações para o adequado manejo da higiene menstrual.
Considerando as 7,5 milhões de meninas que menstruam no país e que frequentam escolas, 3% delas estudam em escolas que não têm banheiro em condições de uso adequadas para esse grupo. “O percentual pode parecer pequeno, mas corresponde a um universo estimado de 213 mil meninas”, aponta o relatório. “Dessas, 65% são negras e a quase totalidade está na rede pública de ensino, o que revela também que a pobreza menstrual é um problema que se sobrepõe às desigualdades de raça e de classe”.
Projeto de Lei pretende facilitar acesso a absorventes no Piauí
O absorvente é um item básico de higiene e está associado ao direito à dignidade. Entretanto, a falta de acesso a esse item e a ausência de um debate público mais sério sobre a menstruação e a desigualdade em se adquirir absorventes, impossibilitam acesso igualitário ao produto tão essencial às pessoas que menstruam.
Estima-se que uma mulher gaste entre R$3 mil e R$8 mil reais ao longo da sua vida menstrual com absorventes. O relatório do Girl UP Nacional, ao realizar essa estimativa, associando com a renda anual de pessoas que vivem com R$1.920 mensalmente, conclui que uma mulher dentro dessa faixa de renda precisa trabalhar até 4 anos para custear os absorventes que usará ao longo da vida.
Ao pensar nesse assunto, o Grupo Sororidade nas Ruas distribui de forma quinzenal, desde o início da pandemia, kits de higiene para mulheres em situação de rua na capital piauiense. “A gente procura atender outras necessidades também com outras coisas básicas. É uma forma de melhorar e aumentar a autoestima e dignidade delas, e a gente percebe que elas sentem confiança na gente, principalmente por sermos mulheres”, acrescenta.
O Grupo Girl UP Teresina também tem se preocupado com a falta de acesso a itens de higiene básica, um projeto de lei voltado para a conscientização sobre a menstruação e a garantia de acesso aos absorventes como uma forma de reduzir a desigualdade social das pessoas que menstruam. “A situação aqui no estado é ainda mais preocupante, porque não se tem nem dados e nem pesquisa a respeito”, diz Amanda Rocha, diretora do grupo. “O que quer dizer que a pobreza menstrual é algo muito negligenciado”.
O Projeto de Lei nº 36/2020 foi apresentado na ALEPI em 9 de setembro de 2020. Ele dispõe sobre a instituição da Política Pública “Menstruação Sem Tabu”. A PL tem como diretrizes o desenvolvimento de programas que visem o desenvolvimento do pensamento livre de preconceito em torno da menstruação. Uma das ações é o incentivo a palestras, cursos e distribuição de material nas escolas, voltados para abordar a menstruação como um processo natural do corpo feminino. O objetivo é combater a evasão escolar em decorrência da menstruação, bem como a distribuição gratuita de absorventes, classificando esse item como um bem essencial, incluindo-os como componente obrigatório das cestas básicas no Piauí.
Ainda que tenha sido aprovada pela Assembleia Legislativa do Piauí (ALEPI), o projeto aguarda a sanção do Governador do Estado, Wellington Dias. Na tentativa de pressionar o governo, o grupo está com uma campanha com abaixo-assinado on-line na tentativa de conseguir a sanção. “A ideia é trazer mais dignidade menstrual para as pessoas que menstruam no Piauí”, conclui.
Já este ano, o deputado José Hélio (PL) apresentou um indicativo de Projeto de Lei que chamou de “Dignidade Íntima Feminina”, propondo a distribuição gratuita de produtos de higiene íntima para estudantes da rede pública estadual de ensino – a proposta, aliás, leva o mesmo nome do programa lançado pelo governo de João Dória (PSDB) em São Paulo.
Projetos de Lei similares já tramitam em outros estados. No Distrito Federal, a alteração em janeiro deste ano da Lei Distrital nº 6.569, de maio de 2020, é voltada para garantir a distribuição de absorventes em unidades básicas de saúde para pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica e para adolescentes nas escolas da rede pública de ensino. No Rio de Janeiro o absorvente já está incluso na cesta básica. Segundo a campanha “Livre para menstruar”, existem 11 projetos de lei protocolados em diferentes estados.
Menstruação ainda é tabu
“Eu menstruei de madrugada, em casa, só falei para minha mãe o que aconteceu, ela me deu o absorvente e pronto. Ela nunca falou sobre isso”, relembra a estudante de Ciências Contábeis, Jéssica Rafaela, 19 anos. Segundo o Relatório “Livre para Menstruar”, que aponta que 30% do Brasil menstrua, o acesso a informações básicas em relação ao tema não chega de forma igualitária para todas as pessoas.
A situação vivida pela jovem é relatada cotidianamente para a enfermeira obstetra Tatiana Melo Guimarães. “Muitas adolescentes de 11, 12 anos, quando estou fazendo atendimento e pergunto se alguém já falou com elas sobre a menstruação, dizem que não”, aponta.
A profissional chama atenção para a necessidade de se debater e discutir a questão da menstruação, em uma tentativa de quebrar o tabu em torno do assunto. “Essa falta de comunicação e educação interfere na saúde da mulher porque, quando vem a menstruação, ela não sabe muitas vezes buscar o recurso ao qual ela pode ter acesso”, acrescenta. “Pode até ter condições de comprar o absorvente, mas não sabe, muitas vezes, como usar”, aponta.
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