Há dois meses, Vitória Alves vive com marcas de uma série de violências que sofreu: a primeira, sexual, foi cometida por um conhecido do bairro, que praticou o crime dentro da casa da jovem. A segunda foi psicológica e aconteceu quando decidiu denunciá-lo, após o ocorrido. Os policiais militares acionados a trataram com desdém, questionaram suas escolhas e um deles chegou a se recusar a registrar o seu depoimento. “O policial simplesmente saiu do quarto porque perdeu a paciência comigo”, a vítima relata ao relembrar o choque e a dificuldade de conseguir se expressar no momento. O segundo policial presente a escutou, mas não deu retorno sobre o desenrolar do caso. “Até hoje não sei o que aconteceu com o depoimento que dei”, lamenta.
No dia seguinte, mesmo com medo de represálias, Vitória foi à Delegacia da Mulher para registrar o Boletim de Ocorrência (B.O) – e relata falta de preparo no atendimento. “Eu não senti que o que ele digitou foi fiel ao que falei e dava para sentir o julgamento”, comenta, acrescentando: “A pessoa mais preparada para lidar com a situação foi a assistente social e, mesmo assim, ela me perguntou o porquê de eu não andar com uma camisinha na bolsa”. Ao ir à delegacia pela segunda vez prestar depoimento, a vítima questionou o que aconteceria a partir dali. Policiais civis, escrivã e assistente social: ninguém soube informar o trâmite do processo.
A jovem aguarda o Ministério Público avaliar o caso para transformá-lo em um processo criminal, se houver indícios suficientes. A demora e os abusos sofridos geram a sensação de impunidade e o arrependimento em ter feito a denúncia. “Eu tenho muito medo de ter passado por tanto desrespeito, tantas pessoas despreparadas e no final ninguém acreditar em mim”, pontua. “Isso tudo acontecer e o agressor sair livre”, avalia. Vitória também diz estar sendo vítima de assédio moral no bairro em que vive.
Segundo o relatório “Visível e Invisível: A vitimização de mulheres no Brasil”, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com dados referentes a 2020, apenas 11,8% das mulheres denunciaram a violência sofrida em uma delegacia especializada. 7,1% delas procurou a Polícia Militar e 2,1% ligou para a Central de Atendimento à Mulher.
Com os altos índices de violência, as mulheres seguem expostas às violências que podem chegar até a máxima consequência: o feminicídio. Aquelas que decidem denunciar costumam se deparar com a pouca oferta de delegacias especializadas, o despreparo no atendimento à vítima e a falta de informação quanto ao processo. As deficiências nas delegacias, porta principal para se realizar denúncias de violência contra as mulheres, contribuem para a manutenção de um ciclo de violência que pode se perpetuar ao longo da vida e que deixa marcas irreversíveis.
Apenas 7 dos 224 municípios piauienses possuem DEAMs
No Piauí, apenas 3,1% das cidades possuem delegacias da mulher, o que corresponde a apenas 7 dos 224 municípios do estado com DEAMs – Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher. Ao todo, são 10 delegacias especializadas na proteção dos direitos das mulheres, 4 delas na capital piauiense. As outras estão localizadas em Picos, Parnaíba, Floriano, Piripiri, São Raimundo Nonato e Bom Jesus, atendendo municípios e comunidades no entorno de cada região. Além disso, Teresina também conta com uma Delegacia de Flagrante de Gênero, a Delegacia Especializada em Feminicídio e a sede do Departamento Estadual de Proteção à Mulher que coordena todas as delegacias.
A quantidade de delegacias especializadas é insuficiente para atender a alta demanda de um estado que é o sexto do país com a maior taxa de feminicídios. Os índices do Piauí são alarmantes: o estado é o segundo entre aqueles que registram crescimento em casos de estupro e estupro de vulnerável, como registrado em 2020 pelo 15º Anuário de Segurança Pública.
A pouca presença das delegacias especializadas, no entanto, não é um caso isolado no Piauí. Segundo dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais do IBGE, no ano de 2018, apenas 8,3% dos municípios do país tinham delegacias especializadas em atendimento à mulher. Dois anos depois, esse número diminuiu. Em 2020, um levantamento realizado pela Revista AzMina identificou que só 7% das cidades brasileiras contam com delegacias de mulheres – o que corresponde a 400 delegacias especializadas no atendimento à mulher, distribuídas em 374 cidades e com a função de atender os mais de cinco mil municípios brasileiros.
As delegacias das mulheres no Brasil devem seguir o que rege o documento de Norma Técnica de Padronização. Uma das diretrizes estabelece que o atendimento deve ser ofertado de forma ininterrupta, durante 24 horas diárias, em todos os dias da semana – incluindo sábados, domingos e feriados.
Ainda segundo a Revista AzMina, das delegacias existentes, apenas 15% funcionam 24 horas. No Piauí, as DEAMs atendem no horário de expediente e em finais de semana e feriados, contando com o escala dos delegados para os atendimentos, sem cumprir a norma técnica.
Rede de apoio integrada é essencial
A rede de atendimento à violência contra a mulher constitui uma série de serviços que devem agir de forma articulada e integrada para garantir a proteção das mulheres em situação de violência, sejam serviços especializados ou de atendimentos gerais. Delegacias, Centros de Referência, Serviços de Saúde e Defensorias, além de Coordenadorias de Políticas para Mulheres, são os principais espaços dentro dessa rota. Entretanto, muitos desses serviços não funcionam de forma interligada.
A estudante Vitória Alves, vítima de abuso sexual, recebe apoio do Centro de Referência para Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência Esperança Garcia (CREG). O Centro foi importante para ela como um dos poucos locais de assistência, humanização e informação que conseguiu desde que foi violentada. “Eu não sabia de nada. Se eu não tivesse o amparo do Centro de Referência, acho que estaria perdida até agora”, pontua.
A rede de apoio da jovem também inclui sua família, que deu apoio para que ela não desistisse de buscar pela justiça. No entanto, a jovem reconhece que isso não é uma realidade para todas as vítimas. “Eu tenho um certo grau de instrução e acompanhamento, mas sei que muitas mulheres não têm essa oportunidade”.
Medidas protetivas aumentam no Piauí, mas serviço precisa ser melhorado
Em 2020, o Piauí registrou um aumento de 15,2% em medidas protetivas, se comparado ao ano anterior. O estado ocupa hoje a 8ª posição do país, segundo dados do 15º Anuário de Segurança Pública. Dados locais mais recentes apontam que, até junho deste ano, 2.060 mulheres já haviam solicitado medidas protetivas. Segundo o Tribunal de Justiça do Piauí, o número representa um aumento de 30,7% nos pedidos, em comparação ao mesmo período do ano passado.
Apesar da importância do registro das medidas protetivas, como forma de garantir a segurança das mulheres, vítimas de violência relatam a dificuldade do Estado em cumprir o seu papel de proteção. É o que aponta a modelo piauiense Rayanne Adorno: após ser vítima de perseguição pelo ex-companheiro, na Europa, a jovem retornou para o Brasil sob recomendação da embaixada, tendo em vista uma maior proteção prevista pela Lei Maria da Penha, incluindo medidas protetivas. Contudo, ela relata que, na prática, a medida não garante a devida segurança. “Me deram um papel que não me protege de absolutamente nada”, critica. “É um avanço, mas não dá a segurança necessária”.
O ex-companheiro também voltou para o Brasil e, para intimidá-la, Rayanne relata que ele enviava através do celular, a localização nas proximidades da sua residência, o que lhe gerava medo e preocupação. Ela também o acusa de difamá-la nas redes sociais. “A delegacia me informou que não tinha o aparato necessário para rastreá-lo”, lamenta a modelo.
A situação persiste há dois anos e a única certeza para Rayanne é de que o Estado é omisso no combate à violência contra as mulheres – além dos sentimentos de raiva, humilhação e abandono. “A pior violência que sinto agora é esse abandono. Essa é a violência mais dolorosa e mais difícil”, relata.
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Com o intuito de fiscalizar o cumprimento das medidas protetivas de urgência e garantir a prevenção da vida das mulheres, em 2020 foi criada a Patrulha Maria da Penha, da Polícia Militar, provocada pela alta demanda dos casos de violência contra a mulher. Além do acompanhamento da mulher, a Patrulha também realiza visitas ao autor da violência. Até janeiro de 2021, após um ano de atuação, foram realizadas 500 fiscalizações de medidas protetivas.
Mas a atuação ainda não é suficiente para garantir uma proteção ampla e completamente eficaz no estado, visto que a Patrulha atua apenas na capital. Somente a quantidade de medidas protetivas expedidas na cidade de Teresina, exigiriam o dobro das fiscalizações realizadas até aqui – anualmente, mais de mil medidas são expedidas somente na capital. Leoneide Rocha, comandante responsável pela Patrulha, argumenta que não é possível atender todas as demandas e que a Patrulha atua apenas em casos que oferecem maiores riscos à proteção da mulher.
Denúncia é necessária para combater violência
Uma a cada 4 mulheres brasileiras acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão durante a pandemia da Covid-19 – são 17 milhões de mulheres alegando sofrer algum tipo de violência, seja ela física, psicológica ou sexual, apenas no último ano.
As mulheres que mais sofreram violência estão na faixa etária entre 16 e 24 anos, correspondendo a 35,2% das mulheres da população. Além disso, violências mais elevadas atingem, em sua maioria, mulheres pretas (28,3%), seguidas de pardas (24,6%) e brancas (23,5%). Quanto ao agressor, 72,8% são conhecidos das mulheres – geralmente os próprios companheiros, ex-maridos, pais ou mães e filhos – reforçando o fato de que o espaço domiciliar segue sendo inseguro para a maior parte das mulheres.
Com os altos índices, a denúncia é uma das principais formas de enfrentamento à violência contra as mulheres, segundo especialistas e coletivos de apoio. Em razão da pandemia, a denúncia online – seja por meio do registro do Boletim de Ocorrência ou por aplicativos – está sendo um serviço utilizado de forma mais recorrente. No ano de 2020, o número de denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Salve Maria teve aumento de 32% em comparação ao ano anterior. “As pessoas usaram mais o aplicativo para fazer as denúncias”, analisa Bárbara Johas, pesquisadora integrante do Observatório da violência contra a mulher no Piauí. “Durante um certo período a gente estava com o isolamento mais restrito e com mais dificuldade de acesso aos serviços”, pontua.
Ainda que venha a ser uma ferramenta para facilitar a denúncia, o aplicativo tem suas limitações, sobretudo, para mulheres que moram em cidades pequenas e com pouco acesso à internet. “O aplicativo tem uma função interessante, mas ele não pode ser entendido como uma única via de acesso aos serviços de proteção à mulher” avalia Bárbara. “Ele também não pode ser uma ferramenta que vise substituir, por exemplo, as DEAMs”.
Madalena Nunes, integrante da Frente Popular de Mulheres contra o Feminicídio no Piauí, defende a importância da denúncia, mas chama a atenção para a necessidade de garantia efetiva da proteção a essas mulheres por parte do Estado. “Muitos locais estão motivando as mulheres a denunciar, mas também é preciso dar garantia de vida a elas”, defende. “Muitas vezes a mulher vai denunciar e, ao chegar em casa, ela pode sofrer uma violência maior porque denunciou, podendo até ser assassinada”, alerta.
As denúncias de violência contra a mulher podem ser feitas por meio de registro de ocorrência nas delegacias especializadas, delegacias gerais ou por meio de boletim de ocorrência online. Além disso, a vítima também pode fazer uso da Central de Atendimento à Mulher pelo número 180, ou ligando para a Polícia Militar, pelo 190 e pelo aplicativo Salve Maria.
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