Há exatos 20 anos o então presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, programava apagões na tentativa de evitar um colapso do fornecimento de energia. O governo pressionava os brasileiros a diminuir seu consumo em 20%, com a possibilidade de receber taxas em sua conta de luz se não atingissem a meta orientada. Hoje, em situação climática desvantajosa e com a escassez da água refletindo em reservatórios de hidrelétricas, surge nova possibilidade de uma condição do passado se repetir no futuro.
As contas de energia elétrica, que já pesam no orçamento do brasileiro, ganharam novo reajuste neste mês de julho. Isso porque a Aneel – Agência Nacional de Energia Elétrica – decidiu aumentar em 52% o valor da bandeira vermelha – patamar 2. A taxa passa de R$6,24 por 100 quilowatts-hora consumidos para R$9,49. Essa taxa extra cobrada na conta de energia pode durar até novembro.
A realidade vem sendo enfrentada com descontentamento, especialmente por parte do consumidor. O diretor da Aneel, Sandoval Feitosa, avalia que a situação pode piorar e que há grande probabilidade de termos, no segundo semestre de 2021, um cenário mais crítico. Com isso, o governo federal segue orientando uso consciente e responsável de água e energia pela sociedade e também pelas indústrias.
Marcos Lira, professor e engenheiro elétrico, classifica a situação atual como a pior crise dos últimos 93 anos. “O que temos mais próximo do que está ocorrendo agora foi o que aconteceu nos anos 2000, com os apagões e racionamento de energia”, diz, em comparativo com crises hídricas anteriores.
O engenheiro reforça que as causas da crise estão ligadas a dois pontos já conhecidos anteriormente: problemas com planejamento e outro de dimensão climática. Com maior destaque para as bacias das regiões sul e sudeste, se cria um comprometimento dos níveis de reservatórios responsáveis pela geração de energia nas hidrelétricas, devido à escassez de chuva. Marcos diz que os horizontes não são muito animadores. “Até novembro, se nada mudar, deve haver racionamento de energia”.
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Mesmo liderando produção de energias renováveis, Piauí tem risco de apagão
Como um grande gerador de energia renovável, o Piauí é o estado com maior capacidade de produção de energia solar, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Alcançando este lugar em junho deste ano, o estado está à frente da Bahia e Minas Gerais. Em maio, o potencial eólico com a energia solar do estado representava 91% da produção energética da região.
Mesmo com este potencial, o Piauí não estará imune à escassez elétrica. O engenheiro afirma que, se houver hoje um racionamento, o estado também vai receber o ônus, independente da quantidade de energia que gera: “Por mais que a nossa matriz elétrica seja suficiente para abastecer todo o estado, boa parte da energia gerada, principalmente eólica e solar, vão para consumidores de outros estados”, explica.
O Brasil possui um sistema de produção e transmissão elétrica que criou a possibilidade de transferência energética de estado para estado. Conectando as cinco regiões do país, essa rede formou quatro subsistemas: sul, sudeste/centro-oeste, nordeste e norte, usando as várias formas de se produzir energia hidroelétrica, termoelétrica e eólica.
A energia que não é nossa
O engenheiro explica sobre o destino da energia renovável que é produzida no Piauí, mas é consumida fora do estado. Essas duas fontes são arrematadas em grandes leilões e nesses espaços estão presentes aqueles que irão produzir e aqueles que irão comprar. Essas grandes usinas enviam energia para grandes consumidores, que geralmente estão em outros estados.
Um outro aspecto é que essas duas fontes são conhecidas como fontes intermitentes, não sendo capazes de dar segurança energética. A energia solar não tem geração à noite e a eólica, gerada a partir da velocidade do vento, não funciona com ventos de intensidade baixa: “Essas fontes podem ser usadas como complementares, mas do ponto da estabilidade energética, ainda não”, detalha.
Crise hídrica e seus impactos
A crise hídrica terá três impactos imediatos: o primeiro será no fornecimento energético, devido à redução do nível de água dos seus reservatórios, comprometendo assim a geração de energia e o abastecimento da população.
O segundo é o aspecto econômico: com o comprometimento da fonte hidroelétrica, há necessidade de optar por um outro tipo de fornecimento, geralmente usinas termelétricas, que produzem energia a partir da queima de carvão, óleo combustível e gás natural em uma caldeira, ou pela fissão de material radioativo, como o urânio. Esse tipo energético tem implicação direta do consumidor. Com seu uso, há um aumento na tarifa de conta de energia, também chamada bandeira tarifária.
A terceira dimensão é a ambiental. As termelétricas produzem através da energia química de combustíveis. Por ser fonte de energia poluente, as termelétricas impactam negativamente no bem estar da natureza.
A atual possibilidade do apagão surge em contexto pandêmico, reforçando a complexidade da situação. Os setores residencial, comercial e industrial seriam os mais afetados.
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Quem produz mais, abastece quem produz menos
O Sistema Interligado Nacional, criado em 1998, é um conjunto de instalações e equipamentos para coordenação e controle de energia elétrica que abrange quatro submercados em diferentes regiões do país. Através de uma malha de transmissão, a interconexão do sistema elétrico garante a transferência de energia entre eles e permite o atendimento a quase todo o mercado consumidor nacional.
Dessa maneira, não é possível pensar o Piauí isoladamente em um contexto de racionamento de energia. O sistema interligado nacional possibilita que a energia gerada em qualquer lugar do país possa abastecer todos os pontos das regiões da federação, sendo que o sistema elétrico brasileiro está dividido em quatro regiões: sistema centro-oeste, norte-nordeste, sul e sudeste.
No Brasil, o setor elétrico possui um modelo de operação diferente, se comparado aos demais países – aqui se adota o sistema hidro-termo-eólico de grande porte, com predominância de usinas hidrelétricas e com múltiplos proprietários.
As empresas responsáveis pela produção e transmissão de energia nesse modelo compõem o Sistema Interligado Nacional (SIN), que atualmente abrange as regiões sul, sudeste, centro-oeste, nordeste e parte da região norte. Todas essas regiões possuem estrutura de grande porte e são interligadas por fios de alta tensão.
A geração de energia que alimenta o Piauí, portanto, pode estar vindo de uma termelétrica de outro estado. “Da mesma forma que uma fonte de energia eólica piauiense pode estar alimentando outros estados”, explica o engenheiro Marcos Lira.
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Medo de apagão amplia a corrida por placas solares
Por medo da escassez de energia, o brasileiro passou a buscar novas alternativas. Com a conta de luz em alta e os reservatórios das hidrelétricas em baixa, a combinação desses dois fatores acaba por resultar na multiplicação da procura por placas fotovoltaicas, tanto em casas quanto em empresas.
A demanda cresceu ainda mais em junho, com a vigência da bandeira vermelha tipo 2, a mais alta no país. Os dados foram analisados com base nos mais de 2,5 milhões de acessos no Portal Solar no período entre janeiro e maio de 2021. A plataforma conecta consumidores com cerca de 20 mil empresas de energia fotovoltaica, entre distribuidores, revendedores, instaladores, projetistas e outras.
Falta planejamento para evitar apagões
O engenheiro Marcos Lira também explica que falta planejamento do setor elétrico para evitar possíveis apagões. “Essa série histórica que conta como foi o período de chuvas em anos anteriores não é incomum”, adverte. No período do fenômeno La Nina, que acontece a cada 3 ou 4 anos, existe a escassez de chuva. Embora do ponto de vista da climatologia não haja muito o que fazer, uma vez que são fenômenos naturais e acontecem com relativa periodicidade. Uma análise do percurso histórico poderia dar indícios para certas previsões. “Se há ferramentas para essa previsão e não foi feito nenhum preparo, houve falhas no aspecto do planejamento”, comenta o especialista.
Ele não descarta a possibilidade de um novo racionamento, como o de 2001. Por outro lado, o Ministro de Minas e Energias Bento Albuquerque, em seu pronunciamento em cadeia nacional, tentou minimizar a situação. “É com serenidade, portanto, que tranquilizamos a todos. Estamos confiantes de que, juntos, superaremos esse período desafiador e transitório”, disse.
Em outra oportunidade, durante entrevista à TV Senado, o ministro negou a possibilidade do Brasil voltar a enfrentar racionamento ou apagão devido à grave crise hídrica. “Não corremos risco de apagão, não corremos risco de racionamento. Como eu já tive oportunidade de falar algumas vezes, nós monitoramos o nosso sistema interligado nacional 24 horas por dia”, afirmou.
O que podemos fazer para evitar o risco de apagão
O uso consciente de energia depende também de cada um dos usuários. Marcos Lira cita que vivemos, atualmente, um momento de aprendizado e indica um ponto fundamental a ser pensado: estratégias para diminuir o consumo em horários de pico. Hoje, o horário corresponde às 17h30 e 20h30, no momento da chegada das pessoas da sua rotina do dia, ligando aparelhos de tv, lâmpadas, ventilador. “No momento de fazer um racionamento, caso venha a existir, deve ser sobretudo nesse horário que há uma grande demanda do setor elétrico”, explica.
Ele também informa que a finalidade das bandeiras tarifárias é equilibrar os custos que as distribuidoras vão adquirindo em função das condições de produção do produto – e informar sobre o contexto, onde cada cor possui uma característica.
Nossa redação entrou em contato com a Equatorial Piauí para comentar o assunto, mas não obtivemos resposta até o fechamento desta reportagem.
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