Aos 77 anos, Alice Almeida é uma mulher ativa. Gosta de dançar, cuidar das plantas e praticar exercícios físicos – divide-se entre essas atividades e o tempo que passa brincando com os sete netos. “Eu e meu marido temos um grupo de amigos que viajam juntos”, acrescenta. A animação e os encontros do grupo da terceira idade foram interrompidos por conta da pandemia. “Não vejo a hora de retornar”, diz Alice, dividindo a expectativa.
A crise sanitária causada pela Covid-19 além de ter afastado Alice dos encontros com amigos e das viagens, acentuou uma realidade um pouco mais grave à população idosa. Em razão do isolamento social e de outros fatores potencializados nesse período, aumentaram as denúncias de violência contra pessoas idosas no país – as vítimas são, sobretudo, do sexo feminino.
No primeiro semestre de 2021, o Brasil registrou 49,2 mil denúncias – desse total, 67,6% (33.291) das vítimas eram mulheres com mais de 60 anos. Desses registros, 37,7% foram de mulheres negras. No Piauí, os dados também se assemelham ao recorte geral: no mesmo período o estado registrou 763 denúncias – 514 delas (67,3%) de mulheres idosas e quase a metade delas (49,4%), negras.
Segundo o último relatório da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), com dados de 2019, os principais tipos de violação cometidos contra idosos são: negligência, abuso financeiro, violência física, violência psicológica, violência sexual e violência institucional.
Em relação à mulher, a violência sexual é um dos tipos ainda mais presentes. A fragilidade do corpo da pessoa idosa é um dos fatores apontados por Tereza Galiza, especialista em gerontologia. “Esse é um dos tipos de abuso que acontece pelo gênero”, comenta. Outro tipo de violência que a pesquisadora pontua atrelada ao gênero é a violência psicológica.
Casos de violência contra idosos aumentaram 83% em um ano
Em 2020, foram registradas 87,9 mil denúncias de violência contra pessoas idosas no Brasil. No ano anterior, as denúncias somaram 48,5 mil, registrando um aumento de 81% em relação ao ano anterior. O levantamento foi feito com exclusividade pelo oestadodopiaui.com através do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH).
Os dados do painel reúnem denúncias acolhidas pelos canais Disque 100, Ligue 180 e aplicativos Direitos Humanos Brasil. Eles apontam que idosos formam o segundo grupo vulnerável com mais denúncias sobre violência, pelo terceiro ano consecutivo – ficando atrás apenas do grupo de criança ou adolescente.
No Piauí, o crescimento é ainda maior. Em 2020, os casos aumentaram 83% (1.202 casos) em comparação ao ano anterior, quando foram registrados 657 casos. Em 2021, somente de janeiro ao dia 2 de agosto, já foram registrados 763 casos de violência.
Esse número poderia ser ainda maior em razão da subnotificação de casos. É o que acredita a pesquisadora Tereza Galiza, explicando que os casos registrados ainda não são capazes de representar a realidade. “Eles têm medo de denunciar”, comenta, acrescentando que o vínculo com o agressor é um dos principais fatores para que a denúncia não ocorra.
Diante do contexto, em dezembro de 2020, a Polícia Civil realizou a Operação Vetus para cumprir mandados. No Piauí, foram apuradas mais de 70 denúncias. A Operação atendeu 13,9 mil idosos vítimas de violência no Brasil e apurou 13.424 denúncias, registrando o aumento de mais de 70% de casos de violações envolvendo pessoas idosas nos primeiros nove meses de 2020.
Mudança do papel social das mulheres pode acentuar agressões
A violência contra idosos está associada ao modo como pessoas com mais de 60 anos são tratadas na sociedade. De um modo geral, são colocadas como pessoas que podem ser tiradas do contexto social e funcional.
A desqualificação é ainda maior quando se trata do corpo feminino. Há uma diferenciação na violência contra a pessoa idosa pautada pelo gênero. Em situações de maior vulnerabilidade por conta da construção social, baixa escolaridade e dependência de terceiros, a probabilidade de violência contra mulheres idosas é ainda maior.
Isso costuma acontecer porque mulheres idosas deixam de estar associadas a papéis que, historicamente, sempre lhes foram atribuídos: o cuidado com os filhos, o lar e o desempenho de atividades financeiras. Com mais de 60 anos, o jogo se inverte: elas se tornam pessoas que necessitam de cuidados e atenção. Para Tereza Galiza, que estuda o envelhecimento, existe um pensamento comum de que a mulher idosa deve performar o mesmo comportamento de quando era mais jovem – o que não considera a diversidade que também é presente na população mais velha.
Galiza pontua que a violência contra a pessoa idosa pode acontecer até mesmo dentro das Instituições de Longa Permanência (ILP), sendo o mais agravante o silêncio. “O silêncio é um dos motivos para que a mulher idosa seja a mais violentada”, conclui.
“Há casos em que as mulheres podem esquecer quem é, questionar a mesma coisa várias vezes”, comenta a especialista. Nessas situações, portanto, há uma quebra da ideia estabelecida para mães e avós, o que geraria as agressões. Esses fatores reforçam a necessidade de observar a velhice com transparência e realidade.
Falta de profissional e políticas públicas dificulta identificação de violências
Como pessoas que devem ter direito à vida, à saúde, à dignidade e outros tantos direitos fundamentais previstos no Estatuto do Idoso, a falta de profissionais qualificados e políticas públicas afeta diretamente a expectativa e a qualidade de vida dessa parte da população.
Segundo Maria Auxiliadora, presidente do Conselho Municipal dos Direitos do Idoso (CMDI), ainda se precisa de muitas políticas públicas voltadas para as pessoas idosas na capital piauiense, por exemplo. “Para enfrentar a violência, precisamos de campanhas de conscientização dos idosos mostrando a eles que a violação de seus direitos devem ser denunciadas. Além de leis mais rígidas para punir os agressores”, comenta.
A necessidade de políticas públicas é vista com atenção também pela Associação dos Cuidadores de Idosos (UNIBRACS). Sônia Poppi, assistente social e integrante da associação, comenta que a pouca capacitação aumenta a dificuldade na identificação de violências. “O problema vem lá de cima”, aponta. “Precisamos de uma rede de apoio logo na entrada do SUS, mas os profissionais que temos hoje não são os melhores”, afirmou.
Outro aspecto que acentua a dificuldade no atendimento é a falta de capacitação dos profissionais. Um dos exemplos dessa falta de pessoal habilitado é que, em Teresina, há apenas uma gerontóloga titulada pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG): Tereza Galiza, ouvida nessa reportagem.
Acesso à informação e acolhimento precisam existir em todas as esferas e etapas no combate a violência: do reconhecimento à denúncia. “Essa mulher vai em uma delegacia e encontra um homem. Sem uma estrutura que possibilite que ela se sinta confortável para revelar seus sentimentos e dores, a gente não vai conseguir chegar nessas notificações”, retoma Sônia.
Continue lendo a série especial sobre violência contra a mulher:
Proteção para dizer basta
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