Durante os século XVII e XVIII, no Brasil, a população negra encontrou maneiras de fugir do regime de trabalho forçado ao qual era submetida. Em pontos estratégicos e de difícil acesso para os “capitães do mato”, escravos em fuga encontravam refúgio e abrigo – esses locais se tornaram, ao longo dos anos, em comunidades de resistência, com forte ligação com a história e trajetória de africanos e afrodescendentes escravizados: os quilombo preservam costumes e cultura trazidos por seus antepassados.
Atualmente, estima-se que mais de 200 quilombos existem somente no Piauí. Entre eles, a Comunidade Quilombola dos Macacos, próximo à São Miguel do Tapuio (230 km de Teresina). No local moram hoje mais de 100 pessoas, distribuídas em pelo menos 30 famílias – elas sobrevivem da agricultura e criação de animais para subsistência. Agora, durante os meses de setembro, outubro e novembro, a comunidade espera as poucas chuvas do período para as colheitas de milho e arroz.
A história do Quilombo dos Macacos possui mais de duzentos anos, mas somente nos últimos 27, a comunidade vem se organizando junto aos órgãos estatais e jurídicos em prol de políticas públicas para saúde, educação e segurança – mas, principalmente, na luta pelo Título de Propriedade da Terra. “Esse documento é uma comprovação de que nós e nossos antepassados existimos”, ressalta Maria Francisca Vieira, líder da comunidade. “É uma forma de comprovar que temos o direito de estar aqui pela resistência e luta daqueles antes de nós”, acrescenta. Assim como a Quilombola dos Macacos, outras dezenas de comunidades esperam os títulos há mais de 20 anos.
A realidade vivida pelo Quilombo dos Macacos se estende também às comunidades tradicionais – como quebradeiras de coco, pescadores e vaqueiros – e povos indígenas que ainda vivem sem titulação. Desde agosto deste ano, o Instituto de Terras do Piauí (Interpi) vem realizando uma série de entregas de títulos coletivos e individuais nos assentamentos e comunidades espalhadas pelo Piauí. Até o momento, assentamentos e quilombos nos municípios de José de Freitas, Barras, Isaías Coelho, Piripiri, Esperantina e Bom Jesus já receberam suas documentações e reconhecimentos da terra onde vivem.
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Apesar da aceleração na entrega dos títulos nos últimos meses, existe uma longa burocracia por trás da regularização. O trabalho exige um estudo histórico dos primeiros documentos jurídicos utilizados na formação do Brasil Colonial, como as cartas de Sesmarias – documentos utilizados pelas autoridades da época para doar terras aos donatários e governadores. O processo, chamado de “arrecadação de terras”, consiste em um inventário de tudo o que foi doado sem registro para que se possa realizar a formalização até a entrega dos títulos às comunidades atuais.
O estudo é feito em parceria com a Universidade Federal do Piauí (UFPI) – a instituição realiza um processo chamado “prova negativo” – ação que comprova não haver movimentação de documentos sob aquele espaço. A partir desse processo, é constatado que os locais sempre estiveram ocupados pelos seus ancestrais, impedindo a ação de grileiros com documentos falsos alegando propriedade sobre aas terras ocupadas.
Todas as etapas consistem em regularização, incluindo vistoria, georreferenciamento das terras, cadastro das famílias, certificação do imóvel e análises sociais e jurídicas. Chico Lucas, Diretor Geral de Reforma e Regularização Fundiária do Interpi, ressalta que um site está sendo desenvolvido junto à academia com o intuito de disponibilizar a digitalização dos documentos encontrados no Arquivo Público do Piauí. Isso deve facilitar a busca do Interpi no processo de titulação, e também acelerar o trabalho dos pesquisadores. O site deve comportar documentos históricos do período Colonial, Imperial e Primeira República.
Desenvolvimento para quem?
Em grande parte do Piauí, a soja cresce como principal produto do agronegócio. O item é vendido para fora do país e utilizado para alimentar o gado – demandando um vasto território para plantação, que estimula o avanço de fazendas e colheitas em locais que moram comunidades tradicionais e quilombolas.
O diretor do Interpi explica que a maioria desses locais são de difícil acesso em termos geográficos. Além disso, não apenas no Piauí, mas em Mato Grosso, Roraima, Tocantins, Oeste da Bahia e sudoeste do Maranhão, essas áreas passam a ter um repentino valor econômico. O perímetro, conhecido como MATOPIBA, faz uma área de expansão de uma das maiores fronteiras agrícolas do país.
“Aqui, prefere-se vender alimento para animal e vender para o exterior, para lucrar mais”, ressalta Chico Lucas. “Isso é uma noção de desenvolvimento do agro, mas quem se desenvolve?”, questiona.
Essa ideia de desenvolvimento vai na contramão do estilo de vida criado dentro desses territórios. É o que afirma o líder do Quilombo Custaneira, localizado no município de Paquetá (distante a 255km de Teresina), Arnaldo Lima. Para Naldinho – como é conhecido – a disputa pelos territórios das comunidades tradicionais e quilombolas visa apenas o desenvolvimento financeiro dos grandes latifundiários, não do bem-estar ou preservação da natureza e das famílias que vivem nas comunidades.
Segundo Naldinho, as famílias quilombolas estão há anos ocupando essas terras e possuem um pertencimento ancestral fato que não é respeitado pelo sistema do agronegócio. “Querem fazer com que a gente vá para as favelas das grandes cidades e que a gente vá embora ignorando uma dívida histórica que esse país tem com o povo negro”, destaca o líder. Naldinho acredita que, além do reconhecimento das terras através da titulação, direitos básicos como educação, saúde e saneamento poderiam ser sanados.
Defender a terra é defender a tradição
No Brasil, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) são os órgãos que defendem os quilombolas e os povos indígenas em âmbito nacional. No Piauí há uma lei estadual que protege o território dos povos tradicionais, como foi o caso da Comunidade do Salto I e Salto II, primeira comunidade ribeirinha titulada no estado – mesmo após o reconhecimento, líderes e moradores continuaram a receber ataques e intimidações.
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Segundo o Interpi, poucos estados brasileiros possuem essa legislação protetiva, porém, agrupamentos como os de vaqueiros, quebradeiras de coco, ciganos e fechos de pasto estão se assentando e sendo reconhecidos. O direito à propriedade garante que se possa “usar, gozar e dispor”, mas os Títulos de Terra não permitem a venda, uma vez que pessoas com algum interesse econômico poderiam comprar as terras dos titulados e fracionar o território.
Quando há invasão ilegal por parte de fazendeiros e grileiros, a Defensoria Pública e Ministério Público são acionados para garantir sua proteção. No caso das Comunidades do Salto I e II, que receberam ameaças de grileiros, uma liminar judicial foi expedida para proteger a população.
Além disso, a partir do projeto “Vozes do Quilombo”, a Defensoria Pública luta para garantir a proteção das comunidades quilombolas. Segundo Karla Andrade, defensora pública e responsável pelo projeto, dentre as demandas repassadas, a maioria são relacionadas à terra.
Outra motivação que originou a criação do projeto diz respeito ao pequeno quantitativo de defensores públicos no estado e as dificuldades de locomoção dos moradores da comunidade até as sedes da defensoria. Para evitar agendamentos e espera, o projeto surge como alternativa para atender demandas coletivas dos quilombos. “Eles têm demandas urgentes, por isso a necessidade de um mecanismo da justiça que possa acessá-los de forma mais rápida”, destaca Karla.
Dentro dos quilombos, além do racismo que enfrentam, estigmas culturalmente repassados atingem esses povos. “Na verdade, a sociedade não pausa para ouvir os quilombos”, frisa Karla. “No dia em que parar vão entender que eles têm muito a nos ensinar”.
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