Em uma pequena cidade da Alemanha, Mittelfran, um adolescente de 15 anos vivia sob total isolamento social dentro de um cativeiro. Kaspar, como ficou conhecido, não tinha contato físico ou verbal com nenhuma outra pessoa. A história conta que, após atingir a maioridade, ele foi encontrado no centro da cidade, com uma carta em mãos explicando um pouco da sua vida. Apesar de desconhecido o motivo pelo qual havia sido aprisionado, ele aprendeu a falar e escrever sem muitas dificuldades de viver em grupo.
Pouco tempo depois, Kaspar Hausser foi assassinado nos jardins do palácio de Ansbach. Acredita-se que sua morte foi encomendada por uma universidade, que pretendia estudar seu cérebro para explicar a privação da linguagem e capacidade humana de viver em sociedade quando não se pertence a um grupo. Esse é um resumo do filme “O enigma de Kaspar Hauser” cujo enredo corrobora para o fato de que a vida em coletivo prescinde a formação da personalidade humana.
A vivência em grupo traz uma série de complexidades – um debate que vai da história à psicologia. Para o sociólogo Michel Maffesoli, as “tribos urbanas” – como nomeou a experiência de viver em grupos específicos – é derivada da necessidade de partilhar ideias, gostos e insatisfações que algumas pessoas acabam tendo de forma parecida. Essa identificação, por sua vez, acontece principalmente na adolescência, quando percebe-se um esforço maior de evocar particularidades que as distinguem do resto da sociedade.
“É a partir do grupo que o jovem se reconhece fazendo parte de um sistema complexo chamado sociedade”, explica o pesquisador em juventude, Ernani Brandão. Para ele, essa experiência pode se manifestar por meio da linguagem verbal e não verbal, através das gírias, roupas ou acessórios. Por isso, ele explica que o papel do jovem depende muito da cultura na qual ele vive, devido às formas bem específicas de viver, estar no mundo, resolver problemas e perceber a realidade à sua volta.
Ainda assim, existem diferenças consideráveis sobre o modo como os jovens vivem o fenômeno da juventude em diferentes épocas. Sobretudo, se levar em consideração que cada jovem vive e experimenta a juventude a partir dos problemas colocados no seu próprio tempo. Por exemplo, ir a uma festa, um estilo musical, uma peça de roupa ou estilo de cabelo, partilhar gostos, escolher um parceiro, ser aceito ou excluído por um grupo, são experiências vividas de forma completamente diferentes a cada década.
Grafitando a palavra
Churrasco, conversas, hip hop tocando ao fundo e algumas latas de spray são pretexto para o encontro dos amigos que compõem o grupo “Vai dar certo”, formado há quase oito anos. Entre as conversas que vão desde amenidades a questões sociais, as gírias, música e gosto pelo grafite são as afinidades que unem o grupo a cada fim de semana.
Não é apenas uma “resenha”, como explica José Eduardo Alemão – ou somente Alemão, como é conhecido entre os colegas -, mas também uma forma de incentivo e união entre os amigos. Ele relata que, apesar das semelhanças, o grupo também tem suas particularidades. “Tem um que entrou na universidade, as meninas estão estudando para fazer vestibular, um cursinho, um emprego”, conta. “Querem mudar de vida e a gente apoia”.
O grafite, então, tornou-se um ponto forte em comum entre eles, seja como forma de manifesto como para simplesmente colorir um local. Em cada arte a assinatura “VDC” (sigla do grupo) é utilizada para identificá-los. Além disso, devido parte do coletivo pertencer à mesma igreja, – Igreja Batista – e terem os mesmos ideais cristãos, surgiu a ideia de escrever versículos bíblicos nos muros da cidade. É a evangelização pelo grafite.
Espalhar a palavra de Deus, segundo Alemão, foi uma forma de reforçar essa relação, mas também de quebrar um estigma. Isso porque, ainda é concebido uma ideia de que o grafite está relacionado ao vandalismo, tanto por ser uma expressão artística mais popular como por ser uma atividade realizada na rua. “Arte é arte”, reforça Alemão. “E a gente mostra que todo jovem pode viver disso, pode fazer disso seus ideiais”.
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Coreia…ops, Teresina
O K-pop é um gênero musical originado na Coreia do Sul, que abrange estilos e gêneros incorporados do pop, rock, jazz, hip hop e folk. Ele surgiu ainda na década de 90, mas nos últimos cinco anos, artistas e a cultura são consumidos na América Latina, Índia, norte da África e Oriente Médio. Esse gênero – muito comum entre adolescentes e jovens adultos – possui um vasto repertório musical e visual, influenciando a moda, turismo, economia e hábitos de consumo em boa parte do mundo.
Apenas em 2020, a exportação do conteúdo sul-coreano representou 68% das receitas do país, tendo como principais compradores Japão, China e Estados Unidos. O crescimento anual representa mais de 10%, informou a Agência de Comércio e Investimento da Coreia do Sul.
O sucesso da “onda coreana” chegou ao Brasil há um tempo. Em Teresina, há quatro anos, 12 meninas e adolescentes fazem parte do grupo de danças urbanas, chamado “Ops, Dancei”. No entanto, as jovens se identificaram fortemente com o K-pop, chegando a realizar covers de apresentações do gênero.
A conexão do grupo e a paixão coreana não ficou apenas dentro do estúdio de dança, do qual fazem parte da turma Saiwry – nome da professora. A cultura coreana se integra ao lazer e diversão. Segundo Geovanna Kristy, de 17 anos, apesar de toda semana se encontrarem nos ensaios, as jovens se encontram para comer pizza e assistir filmes – também coreanos.
Para a dançarina, a proximidade faz muito bem para todas e conversar sobre o tema as aproxima bastante, principalmente porque muitas pessoas não conhecem sobre os artistas e a cultura. Ter com quem conversar e interagir sobre o assunto faz muito bem a todas, garante ela. “É muito bom ficar perto de quem gosta da mesma coisa que você, você se sente mais confortável”, relata Geovanna.
Um pelo outro
O som da Casa do Hip Hop Teresina, no bairro Parque Piauí, zona Sul de Teresina, vem dos passos ritmados e energéticos de dezenas de meninos e meninas que se aventuram no break, free step e lit dance. Os estilos tem desenvolturas diferentes, com origens no hip hop, trap e música eletrônica, mas o espaço e energia compõe um significado unânime entre todos que entram e sai da casa: “Somos uma irmandade: um pelo outro”, diz Alexandre Douglas, dançarino há mais de dez anos.
A identificação não se resume apenas à dança. O estilo das roupas, gírias, músicas são outras semelhanças que os jovens dançarinos possuem e, principalmente, os valores que compartilham. Para Alexandre, isso diz muito respeito à origem do estilo e início da dança de rua, que começou inicialmente nas periferias dos Estados Unidos para combater à violência e discriminação a pessoas negras. Hoje, mais do que isso, remete à mobilização no enfrentamento de preconceitos ainda existentes, reforçando a ideia de que a cultura da rua são também expressões artísticas e políticas.
Outro pilar que sustenta a união dos dançarinos é a irmandade. Enxergar outro dançarino com olhar de concorrência é um sentimento reprovável dentro dos espaços. Isso porque, a essência das danças urbanas é fundamentada no respeito para com seu semelhante. No break, por exemplo, Alexandre cita que há as crews -, apesar de serem núcleos formados por menos pessoas, treinam e ensaiam juntos, buscando evoluir constantemente. No entanto, cada crew representa uma nova família, parceiros de vida, para além da dança.
Os estilos vêm crescendo e ganhando notoriedade na cena artística, gerando competições e campeonatos com frequência. Apesar de nem todos os dançarinos terem oportunidades de dedicarem-se totalmente aos treinos e investir financeiramente em academias e suplementos, quando algum “mano” consegue se destacar, a comunidade intensifica a mobilização para arrecadar fundos. “A gente sempre dá um jeito de fazer um parceiro chegar lá, tá ligado?”, ressalta Alexandre. “Isso faz parte da gente. Não abrimos mão disso”.
A cena é delas
“Tô vendo as flores do gueto brotar. Em todo lugar vocês vão enxergar, a arte feita com caneta. Pare para ouvir as ‘mina’ falar e leia uma preta”, é um trecho da música de Jaísa Caldas. Apesar de nunca gravada, a canção já foi apresentada pela cantora em alguns eventos em Teresina e Timon.
Jaísa é uma das co-fundadoras do Encontro de Artes Femininas, que reúne jovens artesãs, cantoras e dançarinas das duas cidades. O movimento nasceu de estudantes da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) que sentiam falta de uma representação e incentivo de mulheres na cena artística local. Mais do que um coletivo, as artistas são movidas pela identificação de suas trajetórias enquanto mulheres, negritude e trabalho.
Jaisa explica que expressões culturais como o rap ainda são muito ocupadas por homens, por isso a necessidade de articulação entre mulheres com objetivos artísticos em comum. “É preciso dar voz para as minas”, pontua Jaisa. Antes da pandemia da Covid-19, os encontros eram feitos ao ar livre e em locais de fácil acesso. Agora, o projeto levanta-se aos poucos para seguir com os encontros presenciais e divulgar cada vez mais jovens meninas e mulheres que desejam emplacar na carreira artística.
Pertencer à obra
Na saída da missa noturna, a parada quase obrigatória dos jovens da Comunidade Shalom, Igreja Católica, é em alguma pizzaria da cidade. Apesar da celebração encerrar, a música e conversas na mesa ainda gira em mundo de filmes e livros católicos. O momento, mesmo que de maior “descontração”, faz parte do processo de evangelização que os jovens absorvem durante a inserção na igreja.
Raíssa Morais é uma das jovens que sempre se faz presente nos encontros prévios e posteriores à missa. Ela conta que entrou na igreja com o intuito de conhecer mais a Deus e ter uma experiência única. Por indicação, resolveu entrar na comunidade cristã. Porém, precisou passar por algumas etapas, assim como todos os outros jovens.
O primeiro passo foi realizar o Seminário de Vida, um curso simples, com uma série de palestras, louvor e brincadeiras, em um acampamento de jovens. Em seguida, são encaminhados para um grupo de orações, com o objetivo de “trilhar o caminho de paz”. Neste momento, apesar de serem jovens da obra, ainda não são membros da comunidade.
Alguns escolhem trilhar paralelo ao grupo de oração vocacional – um pedido do jovem para ser aceito na comunidade -, com encontros mensais e retiros para o real ingresso na comunidade. Raíssa, por exemplo, ainda não faz parte da comunidade, mas explica que há um chamado muito mais radical, no qual eles são convidados a renunciar de todos os seus bens, projetos e planos pessoais e dedicam-se à evangelização. “Eles partem em missão pelo mundo”, explica a jovem. “Eles têm um compromisso de viver a evangelização”. Além do Brasil, a comunidade Shalom atualmente existe em cerca de 30 países.
Por conta das regras rígidas para ingressar na doutrina, Raíssa explica que muitas pessoas não compreendem o modelo seguido pela comunidade e como jovens e adolescentes sentem-se tão envolvidos com a religião. Para ela, trata-se simplesmente de serem regras que precisam ser seguidas e que há coisas que precisam ser deixadas por conta da comunidade. E afirma: “É renúncia. Já pensei em me desligar até, mas não existiu uma vez que pensei em me afastar que não fui abraçada de novo e acolhida”.
A vida fora da caixa
Apesar de positivo para a juventude, Ernani explica que as relações não precisam ser tão rígidas. Ele afirma que a cultura não é apenas uma só, e que há certas etnias, como a da tribo Makuxi – localizada no estado de Roraima – onde a ideia de pertencimento é muito mais forte do que as urbanas por terem ligações à terra e ao povo. Ele cita que essa tribo, em particular, tem como missão enviar um jovem para fora da aldeia, com o compromisso de que ele retorne para contar as histórias e vivências mundo afora. “Há uma infinidade de culturas, que possuem suas doutrinas e entendimentos de mundo diferentes”, explica o pesquisador.
A psicóloga Amanda Oliveira explica que, a partir dos 12 anos, é comum que ocorra a Síndrome da Adolescência Normal, momento de descobrimento em que os adolescentes começam a entender e perceber suas realidades, gerando afeição por pessoas com gostos parecidos, como um universo particular. Ainda nesta fase, o adolescente forma características de comportamento que leva para toda a vida.
Ela explica que essa tendência grupal é quase vista como uma necessidade na fase da adolescência, por ser um período que carrega muitas transformações, tanto físicas como emocionais. Nesta fase, há uma tendência de buscar grupos para obter aceitação das suas descobertas, gostos e escolhas.
Porém, quando os jovens estão muito imersos na vivência de um grupo, pode ocorrer dificuldades de interação com aqueles que pertencem a outro nicho – como durante transições escolares ou inserção na faculdade e mercado de trabalho. “Nesse ponto, quando algo interfere em sua realidade, pode haver frustração e impactar de forma negativa”, ressalta.
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