domingo, 28 de abril de 2024

O sequestro das cores nacionais

Ressignificados de forma cíclica, as cores e símbolos nacionais mostram mais do que o simples patriotismo

07 de setembro de 2023

“O verde representa nossas matas, o amarelo nosso ouro, o azul o nosso céu e o branco a nossa paz”. Era dessa forma que a professora de estudos sociais ensinava aos pequenos. Assim como a definição do vento ser o ar em movimento, a ordem melódica das cores verde, amarelo, azul e branco ainda ecoam na cabeça de muitos para relembrar a representação das cores da bandeira brasileira, que compõem ainda os outros diversos símbolos nacionais. Carregados com orgulho de tempos em tempos, eles passaram historicamente por frequentes ressignificações e hoje, em um Brasil fortemente polarizado politicamente, integram a retórica discursiva de grupos conservadores, enquanto, do outro lado, grupos tentam retomar os elementos “sequestrados”, que são fortemente relembrados neste 7 de setembro, data de desfile cívico.

O dia 7 de setembro carrega o primeiro grande acontecimento do Brasil enquanto pátria, aquele retratado pelo paraibano Pedro Américo no quadro ‘Independência ou Morte’, considerado a certidão de nascimento do Brasil, simbolizando a proclamação da independência. Nele, é possível identificar a figura de Dom Pedro num cavalo marrom levantando a espada diante de uma tropa fardada. A fina representação do herói, mas que trata-se de uma obra figurativa, pronta anos depois da proclamação da independência e que sabemos não ser fiel ao acontecido, mas que carrega uma representação de luta, assim como os demais símbolos nacionais criados ao decorrer da estruturação do novo governo e, posteriormente, a república, quando surgiu o hino e a bandeira como conhecemos hoje.

A obra representa Dom Pedro II diante das suas tropas à margem do Ipiranga

Os símbolos oficiais nacionais são descritos na Constituição Federal como a Bandeira Nacional, o Hino Nacional, as Armas Nacionais (ou Brasão Nacional) e o Selo Nacional, sendo a identidade da nação no mundo. Eles são regulamentados pela Lei 5.700, de 1971, que padroniza e define as dimensões, padrões, cores e suas representações.

No entanto, mais do que a representação do país para além das fronteiras, em atas e documentos e ações oficiais, eles alimentam o sentimento de nacionalismo, que pode percorrer duas linhas: uma positiva e outra alimentada com o discurso da violência. E isso requer uma atenção especial.

Isso porque regimes fascistas e ditatoriais se utilizam desse sentimento patriótico, somado ao medo de alguma ameaça e temperados com valores morais, religiosos de proteção à família e à vida, justificam agressões a grupos minoritários ou vulneráveis. Aí se encaixam os terrores de Hitler e Mussolini.

Mussolini e Hitler usaram dos símbolos para manobra popular

Os símbolos e a história

No Brasil, isso não passou despercebido. É possível traçar um caminho histórico da ressignificação e apropriação dos símbolos nacionais. O historiador Francisco Alcides Júnior destaca que no Estado Novo, iniciado em 1937, houve uma grande valorização dos símbolos nacionais por parte do governo com a ideia de propagar um sentimento de patriotismo. “Então houve um dia que Getúlio [Vargas] mandou queimar todas as bandeiras dos estados. A ideia era criar um sentimento de unidade nacional para ser um ponto de congregação. Ao invés de você se identificar como mineiro, paulista, piauiense, maranhense, você se identificaria apenas como brasileiro. Então por que o nacionalismo é uma ferramenta importante para o fascismo? Porque ele aglutina, ele junta! Então você manobra de uma forma mais fácil, você consegue impetrar ideias, práticas e etc”, destaca Alcides, acrescentando ainda que “quando o capitalismo falha, o botão de emergência é o fascismo. E o fascismo precisa de elementos que despertem uma cortina de fumaça, um nevoeiro, para que ele possa ser praticado sempre”.

“Quando o capitalismo falha, o botão de emergência é o fascismo. E o fascismo precisa de elementos que despertem uma cortina de fumaça, um nevoeiro, para que ele possa ser praticado sempre”

Somado a esse processo, houve ainda a tentativa de embraquecimento da população, uma espécie de eugenismo brasileiro, com a abertura das fronteiras para a chegada de imigrantes europeus para o reforço da mão de obra e fortalecimento do capitalismo. “A eugenia vai ganhar muita força, mas por quê? Porque é o momento do mundo capitalista industrial. E o que o mundo capitalista industrial precisa é de um trabalhador saudável e produtivo. Então essa ideia do branqueamento aí é de ter uma população saudável e produtiva. Porque é isso que o mundo capitalista liberal precisa. E a Eugenia vai ser a grande metralhadora, a metralhadora científica para essa ideia de uma raça forte, mais pura, menos mestiçada, menos misturada”, acrescenta Alcides.

Com a morte de Getúlio Vargas e o golpe civil-militar de 1964, a fórmula foi mantida e esses símbolos nacionais foram utilizados massivamente na propaganda daqueles governos, reforçados ainda pela ideia de uma “ameaça comunista” e dos valores cristãos, da família e moralidade.

Depois dos “anos de chumbo”, como ficou conhecida a ditadura no Brasil, a partir do processo de  redemocratização, com as Diretas Já (1984) e, posteriormente, do movimento pelo impeachment de Fernando Collor de Mello, pelos Caras Pintadas (1992), ocorreu uma reapropriação e ressignificação dos usos dos símbolos nacionais, agora por grupos mais progressistas. 

No entanto, em 2013, houve nova apropriação e ressignificação destes símbolos pela vertente política mais à direita, com reforço da polarização política, colocando opositores como não patriotas ou inimigos da nação. Este contexto político foi agravado ainda durante a pandemia da Covid, quando intensificaram crises em diversos âmbitos: sanitário, econômico, social, científico e político.

Cores e símbolos à serviço da elite

Apesar de termos aprendido sobre as cores dos nossos símbolos como dizia a professora do primeiro parágrafo, estudiosos aprofundaram essa significação e constataram que as coisas não eram bem assim. Isso porque as cores e a linguagem visual tem grande apelo comunicativo subjetivo nas mensagens e na formação de um discurso. 

O sociólogo Robert Bandeira explica que as cores estão ligadas diretamente à monarquia, defendendo um legado e não um novo Brasil. “O amarelo remete à dinastia austríaca dos Habsburgo, da primeira mulher de D. Pedro I, Leopoldina. O verde se refere à coroa portuguesa, em particular à Casa de Bragança, de D. Pedro I. Esse destaque é necessário para compreendermos de onde vem a escolha das cores deste símbolo nacional, vem de cima, de um pequeno grupo que materializa um desejo particular como universalizante nas mentes e ações das pessoas, algo que é parcial torna-se imparcial”, explica.

Para o sociólogo, o patriotismo regido pelos símbolos não passa de um grande interesse das elites desde sempre: “Indo para a sua questão, do “golpe de 1964”, para as “Diretas Já” e para os “Cara Pintadas”, a primeira constatação é que a bandeira e o hino são símbolos de patriotismo e nesses três episódios o patriotismo foi inflamado. Inflamado, pois foi motivado enquanto um comportamento de “ordem”, que veio de cima, das elites”, destaca. 

“A bandeira e o hino são símbolos de patriotismo e nesses três episódios o patriotismo foi inflamado. Inflamado pois foi motivado enquanto um comportamento de “ordem”, que veio de cima, das elites”

Para Bandeira, a palavra chave do entendimento de tudo é “elite”, tendo em vista que, mesmo pequena, possui o poder de transformar o parcial em imparcial, o particular no universal, isso a partir dos seus interesses. “No golpe militar de 1964, os símbolos nacionais foram utilizados para combater o comunismo que se instalava na ex-União Soviética, sendo esse pretexto um dos utilizados para concretizar o golpe na democracia que nasce em 1945. Pretexto, pois os motivos foram de uma elite que perdia espaço na política representativa para um partido dito de esquerda. Instalou-se o medo e disseminou-se o enredo do medo do comunismo. Nesse período, houve uma associação dos símbolos nacionais às Forças Armadas, um equívoco conceitual! Equívoco, pois a Proclamação da República que instaura a queda do brasão real e instaura o novo modelo da bandeira nacional, veio  travestido de ideários cívicos e não autoritários. Porém, essa associação às Forças Armadas tem um contexto internacional, o nacionalismo apregoado na Itália fascista e na Alemanha Nazista, que associava os símbolos nacionais às forças de guerra, a um ideário de garantia da “pátria amada””, explica.

Assim como nas Diretas Já, os Caras Pintadas, em 1992, também usaram as cores do Brasil

A mesma coisa aconteceu nos movimentos de “Diretas Já”, que contou com o apelo nacionalista, sem armas, mas com um discurso de tomada do Brasil dos militares e a libertação do regime ditatorial, mas que tratava-se apenas de uma massa manobrada por grandes conglomerados capitalistas. Novamente as elites. “Porém, a democratização que ocorre logo após esse episódio, em particular, com promulgação da Constituição de 1988 não conseguimos conquistar um país para todos, mas novamente assistimos e sentimos uma vitória de setores elitistas que se mantém no poder, seja no Judiciário, no Legislativo e no Executivo (não necessariamente no cargo principal, mas nas suas entranhas como os ministérios, secretarias…)”, explica.

Em mais uma retomada da direita conservadora no país, que alavancou o movimento bolsonarista em 2018, outras pautas foram acrescentadas como a contrariedade a políticas sociais como cotas, gênero e que defendessem os grupos minoritários. “O bolsonarismo reeditou, em parte, o golpe de 1964, os cidadãos de bem contra os comunistas. Neste caso, o comunismo era associado não ao seu conceito, ao que realmente é, mas ao Partido dos Trabalhadores (PT) e às políticas de inclusão social, práticas que desagradam às elites, isso novamente as elites. É importante destacar elas, pois o Brasil é escrito por elas”, destaca Robert, acrescentando ainda que “resgatou também o autoritarismo próprio do nacionalismo de ontem, o apreço às Forças Armadas, a bandeira nacional, o hino e adiciona a camisa da seleção brasileira como um símbolo, porém um misto de nacionalismo e de apoio ao governo e suas ideias”, enfatiza.

O sete de setembro

Com a vitória do governo petista tanto em Brasília como no Piauí, o desfile de 7 de Setembro revisitou os símbolos. Na sede do governo federal, enquanto no desfile de 2022 o antigo presidente pedia o coro de “imbroxável” e no seu discurso com tom eleitoral ofendia os poderes com aplausos de militares, neste ano foram exaltados os símbolos da campanha petista, como o SUS e falando em democracia. No Piauí, que já era liderado pelo governo petista, a maior diferença foi a ausência de lideranças sindicais no Grito dos Excluídos, que finaliza o desfile cívico com protestos.

Espalhada em alguns pontos, era possível ver a bandeira do Brasil na Marechal (Foto: Diego Iglesias)

Na rua e nas arquibancadas, muitas pessoas ostentavam a bandeira nacional e a do Piauí enquanto assistiam aos desfiles na avenida Marechal Castelo Branco durante a manhã. Outros trajavam a camisa da seleção brasileira e davam sinais de desacordo com o governo estadual, mas acenavam para os militares positivamente.

Perdida no meio de tantos símbolos na arquibancada, uma bandeira imperial chamava atenção, estendida, ostentada com orgulho por um homem com a camisa do Corinthians, um time que na sua história foi formado por operários e inspirado numa equipe inglesa.

A Bandeira Imperial, representando a monarquia que quer voltar ao poder, também foi vista no desfile cívico. (Foto: Diego Iglesias)

Representando sempre a oposição com passos tímidos, trajando uma camisa vermelha com as palavras “revolução”, “governo operário” e “comunismo” nas costas, além de ostentar uma bandeira do PCO – Partido da Causa Operária-, a professora Lourdes Melo acompanhou o desfile com uma certa decepção pela ausência do Grito dos Excluídos. No entanto, ela fez seu protesto com seu grito silencioso, conversando e ganhando o carinho de apoiadores que a paravam para fotos.

Para Lourdes, a sua representação no Brasil é com o vermelho, pois não precisa de verde e amarelo para provar o patriotismo. “A nossa bandeira sempre será vermelha. O que temos que lutar é pelo nosso povo, pelas pessoas que ainda estão passando necessidade e precisam do governo, pelo trabalhador […]. Temos que lutar é contra o imperialismo que está ai”, enfatiza.

Lourdes Melo, sozinha, representou o Grito dos Excluídos fora da avenida (Foto: Diego Iglesias)

Diante desse cenário, é importante lembrar que os símbolos nacionais se ressignificam de acordo com o tempo histórico e de forma cíclica. E apesar de esquecido em alguns locais, como uma bandeira de papel pisoteada na Marechal, eles acabam tendo uma função, oscilando entre o povo e o governo, mas pago pela elite, que não se importa depois que ele está no chão, como defende o professor Robert Bandeira, que finaliza com um pensamento marcante: 

“Não sei como a ressignificação dos símbolos devem ocorrer, mas caso ocorra deve ser em prol de uma pauta de inclusão de uma emancipação em prol da cidadania, da inclusão da diversidade e da equidade entre as pessoas., mas isso é o desejo de uma simples pessoa, eu. Vejo que o atual governo, o do Lula, quer ressignificar os símbolos, que retirar as marcas autoritárias deles, essa realmente deve ser a postura dele, principalmente porque desfaz o poder brando (a força das ideias) do governo anterior que fez muito mau à democracia  brasileira”.

domingo, 28 de abril de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

1 comentário

Socorro · 7 de setembro de 2023 às 19:07

A desmistificação histórica no Brasil é uma necessidade permanente e continuada. Temos um mundo paralelo com interesses egocêntrico de permanência no poder. Tenho a opinião de que tudo na vida é uma questão desconveniência. Essa afirmação cabe em todas as situações. Parabéns ao companheiro, doutor em sociologia, e não poderia ter uma opinião/análise sobre nossos símbolos e a sua ressignificação, a sociedade brasileira e as distâncias entre os grupos que a formam…

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