Na frente do Instituto Federal do Piauí (IFPI), zona Sul de Teresina, estudantes de todos os bairros da capital esperavam apreensivos para a abertura dos portões da instituição no último domingo (21). O clima entre às 12 e as 13 horas era de pura tensão. Dali a poucos minutos, realizariam o maior Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A prova acontece em dois domingos em todo território brasileiro e define a nota para garantir o acesso ao ensino superior.
Vitor Sousa era um dos mais de 72 mil estudantes que compareceram ao 1° dia da prova no Piauí. Era a primeira vez do estudante de 17 anos realizando o exame. Há quase dois anos em ensino remoto, ele diz se sentir inseguro para fazer a prova e ainda não escolheu o curso que deve moldá-lo para sua profissão, no futuro. Com acesso regular à internet em casa, o estudante enfrentou sem muitas dificuldades os dois últimos anos de ensino médio – porém, o futuro parece um local incerto. “Não tenho expectativas sobre a universidade”, revela Vítor. “Acredito que seja pelo tempo fora da sala de aula”, destaca.
Em contrapartida, Luísa Damasceno, também estudante, teve dificuldades logo no começo da manhã para poder chegar ao local da prova. Moradora do povoado Cerâmica Cil, zona rural da capital, chegar ao local da prova foi mais um dos obstáculos que a adolescente de 18 anos enfrentou em 2021. Com pouco acesso à internet, as aulas remotas eram uma realidade distante dos poucos recursos que a família tinha e estudar para o vestibular foi motivado pelos esforços da mãe.
No dia da prova, temeu que o transporte intermunicipal reduzido pudesse atrasar sua chegada ao local de aplicação. De pé, na parada de ônibus, Luísa esperou quase três horas por uma condução que nunca chegou. Contou com a ajuda de um vizinho, que cobrou 25 reais para deixá-la de moto no Instituto Federal do Piauí, no centro de Teresina.
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“Foi um azar ter ficado tão longe de casa”, lamenta a estudante. “Cheguei desgastada na prova. Me bateu muito desânimo, mas acho que fiz uma boa avaliação”, conta, festejando que tinha se preparado para o tema surpresa da prova de redação – “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”.
No Piauí, cerca de 15 mil estudantes desistiram da prova. Esse total equivale a 21,8% dos inscritos – foi o segundo menor percentual de ausentes do país. De acordo com a especialista em educação, Mônica Freitas, o Enem é uma prova que revela os abismos de diferença entre os estudantes brasileiros. Para ela, a prova é aplicada em um contexto de grande desigualdade.
Após a pandemia da Covid-19, os alunos tiveram que se adaptar bruscamente a um modelo virtual de ensino. Entretanto, as condições e possibilidades para ter acesso a essa nova modalidade evidenciam deficiência de distribuição tecnológica no Estado – como quando pequenas cidades piauienses recorreram ao rádio como forma de driblar a falta de internet – e colocam em contraste as realidades educacionais do setor público e privado.
“Teresina, por exemplo, é a capital que as escolas disputam vagas de outdoor das aprovações nos cursos de medicina”, analisa Mônica. “Entretanto, não garante que uma parte dos alunos possam ter um deslocamento tranquilo para fazer a prova”, observa. Apesar de citar a capital, a professora reforça que esse problema se expande para a maioria das cidades do Piauí.
Agora, enquanto os estudantes se dirigem para o segundo dia de prova, a especialista acredita que o número de desistências seja maior. O decréscimo da participação dos alunos na segunda parte da prova é uma tendência esperada, que revela frustração com o exame e escancara falhas nas políticas de assistência à educação. Luísa, jovem entrevistada nesta reportagem, é uma das estudantes que mantém esse sentimento. Ao fim da conversa, ela não confirmou que retornaria ao segundo dia da prova. Entre os motivos: a falta de transporte e insegurança com a prova de Ciências da Natureza e Matemática e suas Tecnologias.
“É impossível medir o conhecimento dos alunos com uma redação de 30 linhas e 180 questões”, frisa Mônica. “Esse modelo de educação só gera lucros para empresas de cursos e sistemas escolares, enquanto jovens de escola pública disputam entre si pelas porcentagens de cotas”, finaliza.
O desânimo com a prova já havia sido previsto pelo professor Renato Janine, em artigo divulgado na Folha de São Paulo. Em publicação na véspera do exame, o ex-ministro da educação pede para que alunos – em especial os de escolas públicas e que vão recorrer ao sistema de cotas – não desistam da prova. Renato Janine foi o entrevistado da estreia de O Estado do Piauí.
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Durante o texto, ele frisa a importância das cotas como uma ferramenta atenuante das desigualdades educacionais no Brasil. Apesar de haver um discurso latente no imaginário social que minimiza suas existências, não ativá-las, promove cada vez mais a limitação dos espaços públicos na democracia educacional brasileira.
“Mesmo que vocês tenham aprendido menos do que gostariam e mereciam, metade dos lugares em qualquer curso – inclusive medicina, engenharia, direito – serão de vocês. Sua nota talvez não seja tão boa quanto os egressos de escolas particulares, que tiveram um bom ensino remoto emergencial, mas a lei é clara”, escreve Janine.
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