José Rodrigues, de 65 anos, tinha pressa. Ele saiu correndo da Rua Álvaro Mendes, no centro de Teresina, para poder receber uma das quentinhas doadas pela Associação das Prostitutas do Piauí (Aprospi) nas escadarias da Igreja São Benedito. Era por volta das 19h30 de sexta-feira e o homem revelava não ter comido nada o dia inteiro. Tinha fome, sede e cansaço. Não quis conversar muito tempo com a reportagem, relatando precisar voltar. Ao perguntar se ele iria para casa, ele solta um sorriso desanimado em meio à respiração ofegante: “Minha casa é debaixo das paradas de ônibus da praça do Fripisa”.
Célia Gomes, presidente da Aprospi, conta que as pessoas que, no geral, se aproximam do carro para receber alimento, tem histórias parecidas: desemprego, conflitos familiares e drogas. De 2020 para cá, os voluntários das ações realizadas pela associação perceberam um crescimento maior de pessoas em situação de rua nos diversos pontos do centro onde atuam. Na praça João Luís Ferreira – um dos pontos de doação – assim que Célia chama, surgem pessoas de todos os cantos. Cerca de 30 pessoas – homens, mulheres, jovens, idosos, crianças – recebem alimentação.
Na fila para conseguir uma quentinha, a reportagem conhece Raimundo Nonato, de 45 anos. Ele espera calmamente o fluxo de pessoas receberem alimento para poder ir atrás do seu. Assim como a maioria dos que lá estão, essa será sua primeira e única refeição do dia. Ele nasceu em Teresina, mas acaba de voltar de São Paulo – voltou por acreditar que poderia encontrar emprego na cidade. Era vigilante de uma escola, no entanto, com a pandemia da Covid-19, foi demitido. Sem poder pagar o aluguel, a rua se tornou a única opção. “De dia a gente pensa no que vai comer. De noite, a gente pensa onde vai dormir”, conta. “Depois que o sono vem, é uma paz. A gente esquece do medo e da fome”, comenta.
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Enquanto conversamos com outras pessoas em situação de rua, alguns disputam na fila por mais uma quentinha – querem guardar para o dia seguinte ou levar para outra pessoa. Um jovem, que não quis dizer o nome à reportagem, falou que queria mais uma porção para a esposa. Bastante agitado, ele esconde sua quentinha atrás de uma árvore e tenta entrar na fila mais uma vez, na intenção de não ser reconhecido pelos voluntários. Célia explica que evita entregar mais de uma quentinha porque muitos usam-a como moeda de troca para comprar drogas. “É uma realidade muito comum”, observa. “Alguns vem morar aqui pela droga, outros conhecem a droga aqui”.
As histórias são muitas para descrever a mesma situação, mas elas acontecem em todas as zonas da capital. Em Teresina, não existe censo que contabilize a população de rua da cidade. Porém, a Secretaria de Cidadania, Assistência Social e Políticas Integradas (Semcaspi) – órgão municipal que realiza trabalho de apoio a esse grupo – evidenciou um aumento de 47% das pessoas em situação que são abordadas pelos agentes do serviço nas ruas da cidade, em comparação a 2020. Somente entre janeiro e agosto deste ano, 461 pessoas já foram atendidas pelo Centro de Referência Especializado para população em situação de rua – Centro POP.
O Centro de Referência, localizado na região Centro-Sul de Teresina, é o espaço utilizado para que essas pessoas possam tomar banho, realizar refeições, usar lavandaria e caso necessite, podem ser encaminhadas para benefícios sociais ou atendimento de saúde. Comparado ao ano passado, esses atendimentos aumentaram em torno de 280% em Teresina. Ao todo, já foram realizados 1.622 atendimentos nos últimos dez meses deste ano – no mesmo período no ano passado, foram 461.
A pandemia evidenciou o que já acontecia com a população de rua na capital, afirma a presidente da comissão de promoção de cidadania da Ordem dos Advogados do Brasil no Piauí (OAB/PI), Justina Vale. As condições que são conhecidas pela população de rua, aliada à insuficiência de políticas públicas para garantir direitos de moradia e trabalho, provocam que paradas de ônibus, praças, viadutos e prédios abandonados, se tornem pontos de acolhimento de diversas famílias.
Justina frisa que, enquanto não houver políticas efetivas que possam garantir a inserção de pessoas no mercado de trabalho e moradias dignas, haverá constantemente a ampliação no número de pessoas em situação de rua. A advogada ressalta que a crise econômica causada pela pandemia é um desafio para promover essas pessoas. No entanto, essa deve ser uma pauta urgente para os municípios e estados. “Não é possível que as pessoas encontrem nas ruas um local de sobrevivência”, declara Justina. “É necessário que se pense em como captar essas pessoas, mas também como conferir dignidade através de habitação e emprego”, defende. “Abrigar temporariamente e prestar assistência, torna o problema cíclico”.
Antes do estadodopiaui.com finalizar o acompanhamento nas ruas do centro da capital com as voluntárias da Aprospi, uma mulher baixinha chama atenção entre a aglomeração de pessoas. Fabíola da Silva equilibrava a quentinha acima da barriga e escancarava um sorriso com poucos dentes. Grávida de sete meses, ela ainda não sabe qual nome dar para a menina que leva no ventre. Mirou para as roupas estendidas em um varal no centro da praça e disse: “Tá ali minha casa”.
A reportagem acompanhou Fabíola até a cabana improvisada em uma árvore. Havia muitos lençóis estendidos nas folhagens e um grande colchão no chão. Lá, conhecemos Maciel Santos, com quem Fabíola divide o espaço e a vida há dois anos. O casal morava na casa da mãe dela, no Parque Vitória, na região do bairro Angelim, zona sul da capital. Por desentendimentos na residência, acharam melhor viver nas ruas e tentar a sobrevivência com menos de 10 reais por dia – dinheiro que apuram pedindo nos semáforos. Foi ainda nas várias praças da cidade em que o casal morou que Fabíola conheceu as drogas – mesmo grávida, não conseguiu parar o uso.
Maciel e Fabíola não se incomodam de serem fotografados e fazem algumas poses quando a câmara tira os primeiros registros. Ela pede desculpas pelo espaço estar tão bagunçado e enquanto arruma o local, mostra uma placa de isopor que usa para pedir esmola na rua: “Preciso de uma casa. Fiquem todos com Deus”, diz a mensagem escrita. Maciel também tem a sua, pedindo um emprego. Com pouca escolaridade, o homem diz topar qualquer serviço. Com o avanço da gestação, eles temem que a herança da filha seja a lona furada que hoje abriga a família. “Se daqui pro Natal eu conseguir um emprego, vou procurar nem que seja uma kitnet para morar com elas”, diz o homem. “Não quero passar a virada de ano na praça”.
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