sábado, 27 de abril de 2024

O fantasma do descaso à memória

Casarão centenário e um dos prédios mais importantes da cidade, a Casa da Cultura, antiga casa do Barão de Gurguéia, segue abandonada 

17 de julho de 2023

O terror da funcionária pública Edilene Alves era ter que ficar até mais tarde no trabalho. Não era medo do patrão, mas de um “fantasma” que ela alega ter ouvido mover correntes na repartição onde trabalhou. Talvez essa seja a mesma figura assombrosa que atormenta tudo que é memória da cidade, mas que, desta vez, atacou um dos imóveis mais antigos da capital piauiense: a Casa do Barão de Gurguéia, que por décadas ficou conhecida como Casa da Cultura de Teresina. Hoje, assolado pelo espectro do descaso, o prédio não tem mais esse nome e é apenas um imóvel velho com vistas para a Praça Saraiva, com sérios problemas estruturais, mas que guarda muito da história da arte entre suas paredes.

Casa Dona Carlotinha, novo espaço da PMT que recebeu o acervo da antiga Casa da Cultura. 

Hoje Edilene segue com medo de fantasmas, assim como teve medo de contribuir com a entrevista, mas não vê mais assombrações. No máximo quando recebe uma fatura em casa. Funcionária dedicada e apaixonada pela arte, ela era uma das muitas que zelava pelo casarão, o que contribuiu na sua transferência para o novo espaço que recebeu o acervo da antiga Casa da Cultura, chamado de Casa Carlotinha, localizado em frente à Praça João Luis Ferreira, no centro da capital piauiense. Trata-se de um imóvel pertencente à Prefeitura de Teresina que já foi sede da Fundação Monsenhor Chaves, órgão de gestão cultural da cidade.

Apesar das mudanças do acervo, o prédio centenário onde Edilene dedicava suas manhãs segue inabitado, lutando contra as marcas do tempo, mas perseverando no imaginário do teresinense, principalmente nas pessoas mais ligadas à arte e artistas. Ela hoje o vê de longe, fechado, sujo, mas ciente do risco que ele apresentava à sua integridade e à cultura.

Ela, como muitos teresinenses, não podia fazer nada a não ser observar, assim como fez com todas as mudanças de gestão do órgão responsável pelo espaço, bem como as transformações na cidade que consome a memória em nome do progresso. Ela viu por várias vezes os diversos problemas estruturais do imóvel consumido pelo tempo e que implorava por um pouco mais de cuidado. E foram esses os motivos que contribuíram para o seu fechamento após quase 30 anos de atividades. 

O fantasma do tempo que assombra a memória

No final de 2018, a 24ª Promotoria de Justiça de Teresina-PI, especializada na defesa do meio ambiente e patrimônio histórico e cultural, instaurou dois procedimentos visando verificar as condições de segurança e estrutura física do Museu do Piauí e da Casa da Cultura de Teresina. O resultado não foi favorável para a antiga casa do Barão. Antes disso, várias reclamações já haviam sido feitas às gestões alertando para curtos circuitos.

Devido sua estrutura ser antiga, com vigas de madeira gigantes e uma instalação elétrica cheia de gambiarras ao lado de um vasto material sensível ao fogo como telas, fotografias e até mesmo a estrutura de madeira centenária, o risco de um incêndio era iminente. Edilene viu muito disso e ficou triste no dia que teve que deixar o lugar forçadamente devido uma pane e a condenação do lugar pela Equatorial.

Imagem de estudantes numa exposição de fotografia de 2010 mostra as vigas de madeira da casa no canto superior. Foto: Arquivo FCMC/PMT

Por conta disso, o assunto “Casa da Cultura” assusta mais do que o próprio fantasma do Barão. Entre gestores, antigos chefes de departamento e até mesmo a própria Arquidiocese, proprietária do imóvel, temem em falar do prédio. Sheyvan Lima, que era o presidente da Fundação Monsenhor Chaves na época do fechamento da casa, alega que foi triste ver o imóvel ser abandonado, mas que foi uma decisão necessária. “Quando cheguei lá, percebi que há muito tempo a Casa vinha tendo problemas estruturais. Precisava de uma reforma, mas não é uma reforma comum porque é um patrimônio tombado e isso requer muita burocracia, mais do que um prédio comum. Vi o projeto e tentei pleitear recursos para a reforma, mas não consegui. Quando entrei, teve uma pane elétrica e pegou fogo no contador. Disseram que tinha risco de incêndio”, explica.

Devido a pane e ao risco de incêndio que já vinha aumentando ano após ano, o gestor resolveu fechar o espaço e encaminhar o seu acervo para outros locais. “Alugamos a Casa Carlotinha, que é do IPMT, e mandamos parte do material para lá, o acervo sacro para o [Museu de Arte Sacra] Dom Paulo Libório, o balé para o [Teatro] João Paulo II e mantivemos uma equipe de vigilância para assegurar o patrimônio”, explica. 

Para o ex-gestor, houve muitas questões políticas envolvidas no fechamento, com várias rodadas de negociação, mas a situação agravou ainda mais com a chegada da pandemia que obrigou o lugar a fechar. “Aquilo era pra ter sido resolvido apoliticamente. Já peguei o processo no fim do contrato. A Arquidiocese cooperou bastante, alguns meses eles até deixaram de cobrar o aluguel devido o espaço estar fechado. Até tentamos custear a reforma eles descontarem em aluguéis futuros, mas não teve. Não foi feito o projeto executivo e havia um clima de muita animosidade”, destaca Sheyvan.

Essa “animosidade” destacada por Sheyvan teria sido causada por um mesmo “fantasma” que segundo outros gestores da pasta, ocupou o cargo de gestão e que teria criado um clima de constrangimento nas negociações entre Prefeitura e Arquidiocese. Pessoas que acompanharam as negociações e procuradas pela reportagem também confirmaram, mas temem perseguição política por terem seus nomes associados ao embate.

A Casa da Cultura era alugada por um valor em torno de R$ 12 mil mensais pagos à Arquidiocese de Teresina. No entanto, segundo os gestores, o valor da reforma extrapolaria o orçamento da Prefeitura, ainda mais para um órgão de cultura, a pasta que sempre recebe uma das menores fatias de recursos.

A Arquidiocese também foi procurada pela reportagem, mas não houve retorno para saber dos rumos que o espaço irá tomar. Nos bastidores, foi ventilada a possibilidade da Secult (Secretaria de Estado da Cultura) assumir o espaço e a reforma, mas nada passou de conversas e nem chegou a ir pro papel.

Leia mais em: https://oestadodopiaui.com/sem-reforma-e-com-fim-de-contrato-casa-da-cultura-segue-fechada-em-teresina/

 

A morada da cultura

Fotografia de uma das obras da pinacoteca da casa que traz uma das primeiros desenhos da arquitetura do local

As marcas do imóvel contam um pouco da própria história de Teresina. Ele foi construído na última metade do século XIX e já foi morada de João do Rego Monteiro, um fazendeiro, deputado provincial por quatro legislaturas e detentor do único título de Barão de Gurgueia, sendo ainda comendador da Imperial Ordem da Rosa e também coronel da Guarda Nacional.

Ela foi projetada em um esforço para a consolidação de Teresina como a capital juntamente com o conselheiro Saraiva. Foi construída em meados de 1870 como uma das primeiras edificações importantes da cidade e, após a morte do Barão de Gurguéia, em 1913, o prédio foi vendido à Diocese de Teresina, passando a funcionar como Seminário. Logo depois, o Seminário foi fechado e o edifício passou a ser residência episcopal, sofrendo alterações na fachada frontal e em seguida abrigou o Colégio Pedro II.

Com o reconhecimento da importância do edifício para a capital, foi feita uma proposta de tombamento, enquadrando na política de preservação dos imóveis de valor histórico e tornando-se um bem com proteção legal. Com isso, foi cedido à Prefeitura de Teresina e restaurado em 1993, se tornando a Casa da Cultura, que recebeu uma nova reforma em 2010.

Em um passeio pela casa era possível sentir em cada viga e portal, nos corredores e nas salas que eram ocupadas pela arte, um pouco da nossa história. Desde as telhas à fachada reajustada, ainda é possível ver um pouco das mudanças da capital que se moderniza.

Cultura, história, memória e paixão

Essa mistura de história e arte fez com que o espaço fosse resignificado durante os seus quase 30 anos, passando a ocupar um lugar de afeto nos corações de muitos teresinenses. Suas paredes que antes carregavam marcas de açoite deram lugar à quadros, cores, música e memórias. Por diversos anos a Casa da Cultura abrigou os músicos da Orquestra Sinfônica de Teresina que elevavam o tom do espaço com seus ensaios, recebeu exposições de artes visuais, salões de fotografia e o Clube de Vídeo de Teresina, um tradicional ponto de encontro dos amantes da sétima arte, como Jairo Moura, da produtora Potó Filmes, que produziu um vídeo nos guiando em um passeio pelo antigo espaço e que pode ser visto abaixo.

O jornalista, escritor, diretor, roteirista, produtor visual e professor de cinema Monteiro Júnior era um dos frequentadores assíduos do Clube de Vídeo, que tinha uma programação semanal de mostras que iam de cinema Iraniano e piauiense a especiais do Zé do Caixão. As sessões eram comandadas por Alex Fontenele, um outro funcionário da casa que se rendeu à paixão pelo espaço e todos os dias extrapolava o seu horário de expediente em nome da arte. “As sessões ocorriam sempre às 18h30 durante a semana e eram pontos de encontro dos cinéfilos teresinenses que transitavam pelo centro da cidade àquela hora. Nunca imaginaria, na Sala de Vídeo em plena quinta-feira 30 de novembro de 2006 reassistindo a “Frenezi”, um dos últimos filmes do Hitchcock, que menos de dois anos depois eu, trabalhando na Assessoria de Comunicação da FMC, estaria escrevendo matérias sobre a programação do Clube de Vídeo, falando dos filmes exibidos. Vários e vários filmes, diretores, gêneros, tudo no Clube de Vídeo rendia textos e mais textos”, lembra.

O artista visual Avelar Amorim, que reforça a composição da arte da nossa reportagem com uma de suas pinturas retratando a casa, também é um dos apaixonados pelo espaço. Ele chegou a fazer um poema tratando do abandono da casa e que foi bastante replicado nas redes sociais. Para o multiartista, era mais do que um simples prédio. “A Casa da Cultura representa pra mim um ponto de partida e um Norte a todos os novos e veteranos artistas da cidade através da sua variedade de rituais de celebração e contemplação que o espaço favorecia. Era uma troca de experiências através dos encontros que a casa favorecia que se mantinha acesa a luz da Cultura viva em nossa capital”, destaca.

Obra de Avelar Amorim traz sua visão apaixonada pelo espaço em tela

Por juntar vários seguimentos da arte, o espaço acabou se tornando ainda um ponto de convergência de ideias e artistas, sendo fundamental para a história da arte na cidade. “Para a memória da cidade ela foi o palco de boas vindas a toda produção recém saída de seus ateliês ou estúdios, era lá a passagem obrigatória de todo acervo que hoje delineia a materialidade pictórica da arte local, o que de fato dialoga com a história do nosso Patrimônio”, finaliza Avelar.

Assim como Avelar, dezenas de artistas também contam suas histórias com um atravessamento do espaço, seja na participação de suas oficinas, nas aulas de capoeira, nas apresentações no pequeno palco ou em uma visita à simpática diretora Josy Brito, a gestora que passou mais tempo durante a efervescência do local.

Com todos os espaços ocupados pela arte, a área externa também era usada por alunos da oficina de teatro Benjamin Santos, que funcionou na Casa da Cultura.

E não faltaram histórias e vivências no local, que vão desde romances na sala de vídeo à aparições sobrenaturais, como o barulho de correntes durante a noite relatados por antigos funcionários e atribuídos à escravos que teriam sido mortos no local, bem como vultos vistos nos corredores, que seriam o fantasma do Barão, tão temido por Edilene.

Hoje, assim como na música Cidadão, composta na década de 70 por Lúcio Barbosa e interpretada por Zé Ramalho, que fala de um pedreiro que construiu casas e não pode entrar, Edilene, que também ajudou a edificar as estruturas culturais da Casa da Cultura, não pode entrar. Ela apenas vê, pelas frestas, entre os cômodos abandonados, o fantasma do descaso sentado, imóvel, pronto para consumir mais outro espaço da cidade.

O que sobrou dela até agora foi a memória e a arte, um vulto, como descreve em versos emprestados de Avelar Amorim para esse texto:

“DE FRONTE

Avelar Amorim

Ontem passei de fronte a Casa da Cultura

Hoje não é mais a Casa dela

Da Cultura 

Me deu um negócio na hora

Foi só uma passada

Não foi dois minutos

Mas me deu um negócio

A porta estava fechada

Mas parece que eu via um bailarino saindo apressado colocando um Rexona na bolsa

Parece que eu via o moço do Serviço tirando o cadeado das correntes da calçada pra poder tirar o carro do Maestro

Parece que eu via o outro moço da segurança entrando pelos fundos pra trocar o plantão com o outro

Parece que eu via um Artista Plástico novato com uma tela nos braços, na porta com medo de entrar e  perguntando se era ali mesmo

Parece que eu via um músico chegando de moto com um violoncelo preso nas costas.

Parece que eu ouvia o barulho de pisadas no piso de madeira

Parece que eu via o Prefeito Firmino chegando rodeado de adulantes para a abertura do Salão de Fotografia

Parece que eu escutava o barulho dos chuveiros derramando água no banho das bailarinas do Balé da Cidade

Parece que eu via a cara da Secretária comendo um salgado de frente pro computador

Passei tão rápido e vi tanta coisa…

Foi tudo de relance na passagem frente a fachada 

Foi só um vullto

Mas me deu um negócio”

sábado, 27 de abril de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

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