domingo, 24 de novembro de 2024

“Até ontem éramos heróis”

Com índices preocupantes de Burnout, profissionais da saúde são ofendidos e precarizados em Parnaíba

30 de novembro de 2021

Edição Luana Sena

Há quase uma década, Polyena Santos tomou a decisão de se tornar técnica em enfermagem. Os anos de formação foram difíceis, mas ela acreditava que faziam parte da jornada de empecilhos comuns a sua missão: salvar vidas. Quando a pandemia da Covid-19 chegou, sua rotina de trabalho mais que duplicou – chegando a trabalhar 36 horas seguidas de plantão. Dividia-se em dois hospitais: Hospital de Urgência de Teresina (HUT) e Unidade de Pronto Atendimento UPA) do Promorar. 

Polyena enfrentou o medo, o cansaço e a falta de materiais e leitos para atender a demanda de doentes, em um dos momentos mais críticos da pandemia. Perdeu pessoas próximas e viu pacientes morrendo sem poder despedir-se da família. A rotina excessiva de trabalho e a sobrecarga mental acabaram lhe gerando problemas emocionais. Hoje, prestes a completarmos dois anos de enfrentamento a maior crise sanitária da atualidade, a profissional de saúde escuta com tristeza o prefeito de Parnaíba, Mão Santa, chamar a categoria de “moleques” e “vagabundos”.

Do seu gabinete, com um terço no pescoço e a bandeira do Brasil hasteada ao fundo da sala, o político esbraveja ameaçando cortar o ponto dos profissionais que aderiram a um movimento grevista. A manifestação iniciou no dia 10 de novembro por conta do corte de gratificação que a categoria estava recebendo pelo combate à Covid-19. No entanto, por decisão do Tribunal de Justiça do Piauí, a greve foi notificada como ilegal. 

Em nota, a Prefeitura de Parnaíba, através da Superintendência Municipal de Comunicação de Parnaíba, tentou se consertar. Na mensagem, afirma que a frase foi feita “exclusivamente a servidores que não cumprem seus expedientes como deveriam”. 

O Conselho Regional de Enfermagem do Piauí (Coren-PI) repudiou  as declarações do prefeito sobre os profissionais da enfermagem. Para o órgão, a fala agressiva representa a desvalorização e o desrespeito com a categoria em um dos momentos mais críticos vividos pela saúde. 

Outra demanda solicitada pelos profissionais de enfermagem é a aprovação do Projeto de Lei 2.564, de 2020. O PL institui o piso salarial nacional de R$ 4.750 mensais para enfermeiros. Também estabelece carga horária de 30 horas semanais para a categoria. Aprovado pelo Senado na última quarta-feira (24), a proposta agora segue para análise da Câmara dos Deputados.

O Projeto de Lei também define pisos salariais para técnicos de enfermagem (R$ 3.325), auxiliares de enfermagem (R$ 2.375) e parteiras (R$ 2.375). Os valores para esses profissionais são calculados em cima do piso para enfermeiros: 70%, 50% e 50% dos R$ 4.750 previstos no projeto, respectivamente.

 

A beira do colapso

Janaína Mendes sentiu na pele a exaustão e esgotamento físico dentro dos hospitais nas alas destinadas aos pacientes com Covid-19 do Hospital Estadual Dirceu Arcoverde (Heda), em Parnaíba. A dor e o cansaço não eram somente físicos, mas também mental. “Não sou moleca e nem vagabunda”, diz durante a entrevista. “Sou mais uma cidadã que viveu de perto a precarização de ser profissional da saúde no Piauí”, repudiou. “Até ontem éramos heróis”.

A profissional faz parte do perfil de amostragem que mais apresentou síndrome de Burnout (um distúrbio psíquico caracterizado pelo estado de tensão emocional e estresse crônico provocado pelas condições de trabalho) no Piauí este ano: mulher, técnica de enfermagem, com mais de um vínculo empregatício e com jornada de trabalho extensa. 

O estudo “Síndrome de Burnout em profissionais de enfermagem de um hospital no Piauí”, organizado por estudantes e pesquisadores da UFPI, abordou 67 profissionais de enfermagem – 17 enfermeiros, 40 técnicos e 11 auxiliares – para investigar como a condição afetou os profissionais durante a pandemia no estado piauiense.

No estudo, os pesquisadores explicam que a doença apresenta três dimensões: esgotamento profissional, com desgaste e perda de energia para as atividades laborais; despersonalização, quando há perda da capacidade relacional e dificuldade de cumprimento de metas; e diminuição do desempenho profissional – há declínio da autoestima e autoconfiança do trabalhador. De acordo com a International Stress Management Association no Brasil (ISMA-BR), em 2016, o Brasil ocupou a segunda posição no ranking mundial. Os profissionais de saúde ocuparam o 3º lugar entre os mais afetados.

No contexto do trabalho hospitalar é possível perceber a síndrome como desgaste na relação dos próprios profissionais. Os estresses vivenciados entre equipes, por exemplo, também são reconhecidos como causadores de adoecimento ocupacional por Burnout. Com a chegada de um vírus desconhecido, cujos efeitos devastadores ainda observamos em hospitais por todo o mundo, o desgaste das equipes de saúde foi evidenciado.

De acordo com as pesquisadoras que assinam o estudo, essas condições são predominantes para identificar sintomas de Burnout entre os participantes, uma vez que, a maioria dos profissionais de enfermagem apresentam baixo desgaste emocional (59,7%), baixa despersonalização (58,2%) e baixo rendimento profissional (64,2%). 

Os números são preocupantes, alertam. Mas há caminhos possíveis para reverter esse quadro: falar sobre a condição de forma aberta, por exemplo, sem romantizações sobre a profissão – ou evitar críticas desrespeitosas, como a fala do prefeito de Parnaíba – pode ser o primeiro passo. Isso porque, questões como a definição do piso salarial adequado à carga horária e a falta de segurança no local de trabalho são fatores cruciais que implicam no diagnóstico de adoecimento dos trabalhadores de enfermagem. “Não queremos ser heróis”, frisa Janaína. “Queremos respeito”. 

domingo, 24 de novembro de 2024
Categorias: Reportagem

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