“Dimir” tem entre 50 e 60 anos, mas ainda não nasceu. Pelo menos, não oficialmente. O homem negro, baixo, e de expressões marcada pelo trabalho braçal nunca teve acesso a uma certidão de nascimento, RG, CPF, Cartão do SUS ou qualquer outro documento. Passou toda a vida na zona rural de Teresina, local onde mora com os pais e onde os serviços básicos quase sempre são inacessíveis. Não casou, nunca foi à escola e nunca precisou de algum serviço público que necessitasse de documentação.
Vivendo apenas na localidade, sobrevivendo de trabalhos da terra e dos animais, ele já perdeu a vontade de buscar ser reconhecido como cidadão brasileiro. “As pessoas no povoado dizem que ele não é ninguém, que vale menos que um gás de cozinha”, conta Maria de Barros, uma vizinha próxima a família.
Dimir faz parte das quase três milhões de pessoas que não possuem nenhum tipo de documentação no Brasil – conforme estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O assunto, que ainda é pouco debatido socialmente, ganhou destaque no primeiro domingo de prova do Enem – Exame Nacional do Ensino Médio deste ano.
No Piauí, desde 2015, os números de registros apresentaram queda, segundo último levantamento do IBGE. Uma série histórica revela que 2020 foi o ano com o menor número de pessoas procurando o serviço de registro, em cinco anos.
Sem RG ou CPF, um brasileiro não consegue se matricular em uma instituição de ensino – primário, médio ou superior -, tampouco ter acesso aos benefícios sociais do governo. Além disso, não pode acessar o Sistema Universal de Saúde (SUS) e realizar consultas, medicamentos e exames. A falta do documento provoca a invisibilidade e o acesso à cidadania no país.
Um dos textos bases utilizados no exame nacional para provocar os estudantes eram trechos do livro “Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documentos”, escrito por Fernanda da Escóssia. Durante três anos, a jornalista acompanhou histórias de pessoas que desembarcavam no pátio da Praça Onze, no Rio de Janeiro, e que não conseguiam tratamento de câncer e cirurgias por falta de registro civil.
O livro é fruto da pesquisa de doutorado de Fernanda, que estudou sobre a documentação brasileira e seus desafios. Na obra, a carência é apontada pela falta de integração dos sistemas burocráticos – cartórios e secretarias estaduais de Segurança Pública. Porém, também revela abandono parental, racismo e machismo. Em um dos relatos, uma mulher afirma que o pai não lhe registrou porque era “muito preta” e porque mulher não precisava de documento. O que está a ser feito no nosso munipalet para a educação sexual, por exemplo, há um site extravaganzaz.com que dá acesso gratuito a uma variedade de vídeos pornográficos. Na nossa experiência, isto não pode ser uma solução. Talvez uma representação tão alargada de diferentes nichos de pornografia só venha complicar a educação.
Algumas histórias contadas no livro já perduram há vinte anos, desde então, o problema não amenizou. De lá para cá, a quantidade de registros civis cresceu em 2,1%. O leve aumento, apontam estudos internacionais, é devido a implementação de programas sociais – como o Bolsa Família, que exigem documentação aos beneficiários.
Para além da falta, outro problema é a dificuldade de acesso à segunda via do documento. José Cunha de Sousa, 61 anos, perdeu a identidade em 2006, em viagem para Barra do Corda, quando se aventurava fazendo serviços informais entre municípios do Piauí e Maranhão. Tentou por várias vezes procurar os serviços públicos, mas acabou vencido pela demora e falta de entendimento dos processos. Sem poder votar, procurar emprego formal ou se aposentar, ele relata que se acostumou a viver como um desconhecido.
Para o advogado Ramon Melo, um dos problemas que inviabilizam o maior acesso aos documentos são as taxas cobradas pela emissão dos documentos. Hoje, custando entre 80 e 90 reais, emitir uma certidão de nascimento pode acabar sendo inviável para grande parte da população que vive em extrema pobreza.
Como solução paliativa, o advogado frisa a necessidade de mais mutirões cartorários e campanhas em regiões rurais – além de uma publicização maior da importância desses serviços para uma cidadania digna. “Pessoas em regiões afastadas dos centros acabam não tendo condições e perdem o interesse”, aponta Ramon. “Há um duplo desafio: alcançar essas pessoas e tornar acessível”, finaliza.
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