Eram quase 19 horas da última sexta-feira (7), quando uma publicação de Maria do Céu Carvalho começou a repercutir em vários perfis no Instagram. Não por coincidência, em sua maioria, de mulheres. “Alerta. Gatilho. Violência Doméstica”, dizia a postagem na primeira semana do ano. A sequência narrava uma série de violências praticadas pelo companheiro, dentro de casa, contra ela e a filha.
Maria do Céu destacava que a publicação tinha o objetivo de informar, amigos e pessoas próximas, sobre as agressões cotidianas. Apesar das marcas físicas e emocionais deixadas pela violência, vizinhos se negaram a ser testemunha alegando medo. Ainda no mesmo dia, a vítima saiu da delegacia com uma medida protetiva e um registro do boletim de ocorrência. “Um papel não pode me proteger de monstros, que se acham superiores as mulheres”, ressaltou a jovem. “Eu não quero virar estatística”, declara na publicação.
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Os impactos do silêncio ocasionado pelo isolamento obrigatório, por conta da pandemia da Covid-19, começam a despontar. Entre janeiro e setembro, no Piauí, foram cerca de 4.909 boletins de ocorrências registrados nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) – segundo último levantamento realizado pela Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP-PI), através do 7º Boletim de Ocorrências de Violência Contra a Mulher no Piauí. O número alarma um crescimento de quase 30%, se comparado ao mesmo período no ano anterior 2020.
Ainda em 2021, foi registrado a segunda menor incidência de feminicídios em uma série histórica dos últimos sete anos. Ao todo, 26 mulheres foram mortas em contexto de violência de gênero. Conforme o levantamento,10 mulheres residiam em Teresina, enquanto 16 moravam em outros municípios piauienses.
De acordo com a delegada Eugênia Villa, o feminicídio é um dado estarrecedor. Não apenas por ser um crime no ambiente doméstico e ser marcado por tensões familiares, mas por ser marcado pelo menosprezo da situação de ser mulher. Durante a pandemia os números não baixaram, mas foram silenciados por conta do isolamento. Locais de apoio como igrejas, escolas e, até mesmo, associações de bairro estavam de portas fechadas. “A subnotificação aumentou”, afirma Eugênia.
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Para reverter esse panorama, a Polícia Civil criou um campo de denúncias virtuais. Porém, a ferramenta não chegou às mulheres sem acesso à internet. Em 2022, um dos desafios é publicizar os canais virtuais, mas também prover que ele chegue às regiões mais periféricas.
Além de delegada, Eugênia é pesquisadora em estudos criminais. Em seu trabalho de doutorado, pesquisou e analisou casos de feminicídios no Piauí entre 2015 a 2018. Como também falas de promotores, delegados, advogados e vítimas indiretas do feminicídio – mães, pais, filhos. A ideia era entender como os crimes se manifestam em uma esfera de ódio explícita contra as mulheres.
De acordo com seu livro originado da tese, “O circuito do feminicídio”, o crime pode ser observado através da linguagem. Comumente, mulheres vítimas de feminicídio são mortas em situações de tortura e humilhação. Na fala dos agressores, a mulher é sempre vista como causadora/provocadora do crime que foi cometido contra ela mesma.
“Diferente de crimes como homicídio, entre homens, é possível notar uma sequência de violência: antes e depois do crime”, observa a delegada. “Por isso é importante o alerta de toda a sociedade para identificar atos de misoginia e machismo”, conclui a pesquisadora.
Estancar as estatísticas não é um trabalho que depende apenas das instituições jurídicas-policiais, aponta a pesquisadora em gênero Gabriela Rodrigues. Isso porque, muitas vezes o agressor é uma pessoa do círculo de confiança da vítima: companheiro, pai e amigo configuram os principais agressores, segundo o Anuário de Segurança Pública. Esse é um dos motivos que ainda faz a vítima ocultar a identidade do agressor.
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Para o combate efetivo de violência contra à mulher, um dos primeiros passos é entender os dados. Gabriela cita, por exemplo, que os meses de março e agosto são os que registram menos ocorrência de violência e feminicídios, tendo em vista o fortalecimento de campanhas de proteção à mulher. “Como expandir isso para o ano inteiro?”, questiona a pesquisadora, destacando a importância de que não apenas as campanhas sejam mais extensas, mas que possam impactar fora dos calendários temáticos para refletir nas estatísticas.
Um dos pontos principais é também reforçar a confiança na vítima. Assim como Maria do Céu, cerca de 80% das vítimas relatam que sentiram seus depoimentos sendo questionados durante a busca por ajuda. “Capacitação policial vai além de entender a lei”, pontua Gabriela. “Não é normal que uma mulher tenha que repetir a mesma história na delegacia”, frisa a pesquisadora. “Quando uma mulher busca ajuda, ela está dando o primeiro passo para romper o ciclo de violência. O Estado não precisa ser um impecilho”.
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