Paulinha, de 31 anos, era conhecida como uma mulher de sorriso largo e fácil. Engraçada, fazia piada de tudo, até de si mesma. Para os que a conheceram, era uma forma de levar com leveza a vida difícil que tinha. Nos últimos anos, ela cortou relações com a família por se assumir uma mulher travesti, e sustentava-se por conta própria. A memória que Paulinha deixou é bem diferente da notícia que tomou os noticiários no último domingo (23): assassinada a pauladas e facadas, à luz do dia, em Timon, cidade maranhense vizinha a Teresina.
A brutalidade e violência cometidas contra Paulinha, revelam o panorama da transfobia no Brasil: pelo 13° ano consecutivo, o país é o local que mais mata pessoas trans no mundo. De 2008 até 2020, o crime aumentou em 201%. Os dados são apresentados no dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), lançado há um ano, no Dia Nacional da Visibilidade Trans.
A mulher trans e travesti é a principal vítima. Em 2020, por exemplo, não houve evidência de assassinatos de homens trans – os dados constam apenas de mulheres, das quais mais de 80% eram negras. A pandemia da Covid-19 acentuou essas vulnerabilidades, entre os meses de janeiro e agosto a incidência de mortes ascendeu. “A realidade da população trans é abandono e carências, desde o afeto familiar aos recursos básicos, como saúde, segurança e educação”, aponta Joseane Borges, gerente de enfrentamento a LGBTfobia no Piauí.
A falta de direitos básicos, aliados à exclusão da família está intimamente ligada ao cenário de vulnerabilidades dessa população. O cenário empurra essas pessoas para a rua e para situação de marginalidade: sem apoio familiar e a falta de amparo do estado, pessoas trans tendem a ir para as ruas e, no caso das mulheres, encontrar o mundo violento da prostituição. Em um contexto pandêmico, com menos policiamento e pessoas na rua, foi favorecida a impunidade aos agressores.
Conforme a Antra, mais de 72% dos assassinatos foram contra travestis e transexuais profissionais do sexo. A organização aponta que cerca de 90% está na prostituição, enquanto apenas 6% ocupam o mercado formal e 4% a informalidade. “Ainda há uma agenda e posturas anti-trans e anti-gênero que não abre as portas e a sociedade para que essa população esteja no mercado de trabalho”, destaca Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra e uma das autoras do dossiê.
Benevides, que também é uma mulher trans, destaca que os crimes são marcados pela crueldade e vandalização dos corpos. Paulinha não foi a primeira mulher assassinada e que teve o corpo vilipendiado, como também exposto em praça pública. Para a pesquisadora, isso revela o fator de ódio reverberado nos crimes. A falta de impunidade e a própria mobilização social também são um dos motivos para perpetuar a impunidade. “Se o estado permite, se a sociedade permite, o ódio é reverberado”, aponta Benevides. “A ausência e o discurso não matam, mas direcionam o alvo da violência”.
Mesmo quando não são assassinadas, o suicídio e adoecimento mental aparecem com evidência nessa população. O assasianto também pode ser “simbólico”: quando a pessoa trans não tem chance de arranjar emprego, não tem seu nome respeitado ou são impedidas de transitar nos ambientes sociais.
Quando, onde e quem?
Enquanto a Covid-19 se alastrava pelo país, entre os meses de março e abril de 2020, somavam-se 66 assassinatos às mulheres trans. Os casos não pararam de aumentar e, nos últimos dois meses do ano, o número saltou de 149 para 175 mortes.
O marcador racial dispara entre os casos do relatório. Em menos de 3% deles, não foi possível identificar a raça das vítimas. Enquanto isso, 78° eram mulheres negras, pretas e pardas. A média de idade se apresentou em 28 anos. Em 2019, de um total de 109 casos, 56% das vítimas tinham entre 15 e 29 anos. O dado apontou uma estimativa de vida de 35 anos de idade para a população transexual. Em cerca de 71% dos casos as mortes ocorreram em locais públicos. Em 2020, oito das vítimas se encontravam em situação de rua.
Desde o primeiro relatório da Antra, o Nordeste foi a região que mais concentrou mortes. Em seguida, aparece a região Sudeste, com o 2° maior número de casos. Em terceira posição, a região Sul, enquanto Norte e Centro Oeste empatam com a mesma porcentagem.
O dossiê enfatiza que o cenário de pandemia foi um novo impacto na vida das pessoas trans. Isso porque mais de 70% nem chegaram a ter acesso às políticas emergenciais do estado, como o auxílio emergencial. Problemas ligados ao nome social e a própria precarização – como falta de internet ou falta de aparelho – foram um dos empecilhos para que pudessem ter acesso ao benefício. As ruas expuseram mais ainda essa população ao vírus e as vulnerabilidades.
A escassez de informações mais detalhadas, revela uma falta de esforço do estado em solucionar os problemas da população. Para Benevides, há um “apagão de dados” quando se trata dos cidadãos LGBTQIA+. Para reforçar e fortalecer políticas públicas para essa população, é imprescindível que o governo e órgãos entendam onde e como as pessoas trans estão.
Por isso, mais que uma data que traga a ideia de visibilidade, Daiane Oliveira, mulher trans, destaca que é necessário respeito e cidadania plena para os homens e mulheres trans/travestis. “Quando digo que quero ser vista, não é na página policial”, afirma à reportagem. “Eu quero andar sem medo, quero que me chamem pelo nome, quero ir ao hospital sem me constranger, quero entrar numa fila sem explicar minha história”, declara. “Eu quero ser respeitada”, finaliza Daiane.
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