domingo, 24 de novembro de 2024

Virando a prova

Falta de assistência e desigualdades na educação afastam estudantes do Enem: “No exame é valorizado o adestramento”

10 de fevereiro de 2022

Edição Luana Sena

João Carlos Vasconcelos sonha em ser médico mas, por conta da alta nota de corte para o curso, cogitou ingressar no curso de enfermagem. A realização, no entanto, foi adiada. O mototaxista faz parte dos mais de 18 mil alunos que desistiram de finalizar a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 202,  no segundo dia da aplicação do teste. 

Não é a primeira vez que ele abandona a prova. Em janeiro do ano passado – quando foi aplicado o Enem 2020 – ele foi embora sem terminar a redação. Apesar de ter ficado até pouco mais das 17h, faltando pouco menos de meia hora para entregar a prova, o cartão de respostas foi entregue quase em branco. “Não consigo me concentrar na hora da prova”, explica o jovem. “É exaustivo, muito conteúdo e pouco tempo”, avalia.

Ao longo do ano de preparação ele se dividia entre transportar passageiros sob sua moto e resolver questões ou atualizar algum conteúdo enquanto esperava novos clientes no ponto de mototaxistas na Praça do Fripisa, esquina da Rua Areolino de Abreu, em Teresina. Terminado o ensino médio há quase uma década, o esforço do cotidiano é para preencher as lacunas de conhecimento que não conseguiu absorver na rede pública de ensino. “Tive acesso a poucas disciplinas por falta de professores, aulas rasas”, comenta. “É a realidade que uma escola pública oferece, né?”.

Nesta quinta-feira (10), ele não abrirá a página do participante  para conferir o seu desempenho – mais uma vez, ele vai prorrogar o sonho de ser médico para o ano que vem. Além de João, cerca de 3,1 milhões de estudantes em todo o país não fizeram as provas – algo em torno dos 26% de inscritos. O número é bem menor se comparado à taxa de 2020, quando 51,5% desistiram de concluir o certame. O Piauí, no entanto, foi o estado que teve a segunda menor taxa de abstenção nas provas. 

Para o contexto da educação brasileira, o Enem se apresenta como um sistema de falhas e injustiças. Isso porque estudantes de realidades de vidas diferentes enfrentam uma mesma prova. Raimundo Dutra, doutor em educação, aponta que o cenário é de estudantes da escola pública com poucas condições – econômicas, culturais e pedagógicas – disputando com alunos que tiveram o melhor acesso aos melhores professores e dispositivos. 

A divisão das condições da educação são díspares. Os últimos dois anos, preenchidos pela pandemia, reforçou esse contraste. Foram mais de quatro milhões de estudantes, entre seis e 34 anos, que abandonaram os estudos em 2020. Quando o ano letivo de 2021 começou, cerca de 17,4% não pretendiam mais voltar para sala de aula – apontou uma pesquisa feita pelo Bank/Datafolha. 

Os problemas que existiam antes do vírus se acentuaram quando o modelo remoto foi adotado. Enquanto boa parte das famílias de estudantes de baixa renda sofriam carências básicas – acesso à alimentação, saúde e assistência social – alunos da rede privada eram atendidos com transmissões virtuais, suporte tecnológico e aparato de estudo para o exame. “A pandemia trouxe o retrato da exclusão. Ficou mais evidente os abismos na educação brasileira”, frisa Dutra. 

Outro ponto trazido pelo professor é que não apenas o caminho da prova passa por dificuldades. O exame, em si, não valoriza aspectos de análise e reflexão dos estudantes. “No Enem é valorizado o adestramento”, diz se referindo a grande quantidade de conteúdos e formato de 180 perguntas distribuídas por área de conhecimento – Humanas, Natureza, Linguagens e Matemática. “O Enem não é um sistema injusto, mas ocorre no contexto educacional brasileiro, onde a própria educação mostra fragilidades e injustiças”, aponta Dutra. “Não é preciso extingui-lo, mas redimensioná-lo para tornar a prova mais eficaz”.

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Categorias: Reportagem

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