O laboratório de Jéssyka Rodrigues está dentro do seu quarto. Mas, a depender do seu olhar, pode ser na rua, na praia, em qualquer lugar. Como na vez em que ia para casa da sua mãe e, durante o percurso, percebeu que entre os bares por onde passava, a presença masculina dominava. “Onde estão as mulheres para se divertir?”, se questionava. Quando se é cientista, tudo vira uma questão.
Assim é a vida de Jéssyka. Muito caseira, ela divide seu tempo entre os livros, pesquisas, investigações, passeios de moto e suas duas gatas de estimação: Dandara e Frida – homenagem a duas mulheres feministas. Em Parnaíba, em uma casa que fica a 15 minutos da praia, a travesti divide questionamentos em espaços difíceis de ocupar: a ciência na universidade pública e como assistente de pesquisa na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “É preciso que a gente fale que a produção de saberes ainda é direcionada para um público e ele é heterossexual, cisgênero e branco”, observa.
Ser pesquisadora para ela veio como uma necessidade. Enquanto mulher negra e travesti, incomodava que a sua existência, para muitas pessoas, fosse um problema. Foi por isso que, ainda na graduação, pesquisou sobre a importância do nome social da população trans e travesti dentro das instituições de ensino superior. “Eu queria entender por que somos excluídas”, destacou.
As motivações para ser pesquisadora estão ligadas a sua existência. Para Jéssyka não existem motivos para ser cientistas. A razão está mais ligada ao questionamento de por que não ser. Ela sabia que o caminho não seria fácil, principalmente quando recortou o seu tema para estudar no mestrado: travestilidades negras na educação na pós-graduação.
A entrada no mundo acadêmico fez Jéssyka perceber que, além do cargo de pesquisadora, precisaria ser submissa e desobediente das normas. “Somos poucas na universidade, mas estamos avançando”, avalia.
A presença de Jéssyka nos corredores da universidade é uma resistência. No país que mais mata trans e travestis no mundo, não é por acaso que apenas 0,02% dessa população esteja dentro das instituições superiores – apontam dados do Projeto Além do Arco-Íris/ AfroReggae. “Isso é um projeto de aniquilamento, assim como também é um projeto sucatear a pesquisa em um aspecto geral”, frisa a cientista.
No Brasil, de acordo com o CNPq, as mulheres constituem 43,7% das pesquisadoras – apesar de a proporção relativa diminuir com o aumento da faixa etária: 45,9% a 41,5% no grupo de 35 a 54 anos e ao redor de 30% entre 55 e 64 anos. A previsão é de que, até 2030, o número de mulheres supere o de homens.
Mas Jéssyka ainda aponta a necessidade desse espaço se tornar mais amplo. Durante a sua graduação, ela foi alvo de transfobia institucional – a cientista prefere não citar o nome da instituição. Esse é ainda um dos motivos que afasta travestis, mulheres e homens trans das salas de aula.
Além da falta de representatividade, ela cita a desvalorização. Para fazer ciência, é preciso investimento. Com os sucessivos cortes nas verbas destinadas à pesquisa, o CNPq, principal agência de apoio à pesquisa do país, perdeu 90% do seu orçamento de fomento em 10 anos – atualmente, o orçamento é o menor de todo o século XXI. Atualmente, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) perdeu 52% de sua verba orçamentária entre 2013 e 2020, voltando ao patamar de duas décadas atrás – quando o número de pesquisadores ativos no país era apenas 1/4 do atual.
No final do mês, as contas chegam. Para ser pesquisadora, além da dedicação, é preciso que haja manutenção. Muitas vezes, além das dificuldades de gênero já existente – maternidade, dupla jornada e outras vulnerabilidades enfrentadas por mulheres cis, trans e travestis – a falta de dinheiro para sobrevivência promove o abandono das pesquisas. “As mulheres sempre produziram ciência, mas acontece esse apagamento”, conta, se referindo à falta de políticas públicas destinadas a promover o desenvolvimento das pesquisas e incentivo.
No dia 11 de fevereiro, Dia Internacional das Mulheres e Meninas nas Ciências, Jéssyka acredita que há uma ciência sendo feita pela resistência feminina. “Eu quero que uma jovem trans possa ler essa entrevista e dizer: ‘nossa, uma travesti cientista. É possível’”, deseja. “Não porque foi fácil chegar aqui, mas porque podemos”.
Não fosse a pandemia, ela estaria dentro dos laboratórios da Fiocruz, executando suas entrevistas e suas abordagens mundo afora. Por enquanto, Jéssyka segue do seu quarto, onde tenta entender mais sobre si e sobre as coisas ao seu redor. Perto do mar, dando voltas em sua moto, resistindo à vida e desobedecendo padrões. “Eu sou isso: uma pesquisadora, negra, travesti, motoqueira e desobediente”, conta, com um largo sorriso vitorioso.
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