“Bandido e ladrão”: com essas palavras, o ex-atendente de telemarketing, Thayann Marcello Oliveira, era atendido por clientes do Sul e Sudeste do país. Bastava que a pessoa do outro lado da linha reconhecesse o sotaque do piauiense, ou o DDD, para acontecer ataques xenofóbicos. As ofensas não são diferentes quando Thayann entra em partidas de jogos onlines, com pessoas de outras regiões. “Já me perguntaram como eu fazia para beber água ou se na minha casa tinha apenas rapadura pra comer”, conta o jovem.
Nordestinos são os principais alvos de xenofobia no Brasil, apontou o último relatório da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Governo Federal, em 2015. Em casos de violação dos direitos de migrantes, houve um crescimento de 633% comparado ao ano anterior.
As denúncias foram realizadas através do Disque 100 – serviço de atendimento telefônico gratuito criado para o recebimento de denúncias de violações de direitos humanos. Comparado ao ano de 2014, houve uma queda de 8,41% das ocorrências, com cerca de 354 mil casos. Em 2015 foram 324 mil ligações, mas houve um aumento de 1,94% de denúncias acolhidas e encaminhadas aos órgãos responsáveis pela investigação – os dados também contemplam casos de violência contra crianças, adolescentes, idosos e população LGBT.
De acordo com o pesquisador José Roniere, os casos de xenofobia contra nordestinos costumam acontecer em períodos de debate pré e pós eleitoral, emergindo discursos de ódio contra categorias socialmente marginalizadas nas redes sociais – negros também despontam como principais alvos dos crimes. Como exemplo, em sua pesquisa ele cita que, após a vitória da ex-presidenta Dilma Rousseff, uma onda de ataques a nordestinos emergiram nas redes sociais. Veja algumas frases abaixo que compõem a dissertação de Roniere.
Todas as frases, explica Roniere, foram postadas em perfis que mostravam fotos e nomes dos usuários – caracterizando uma forma explícita de discriminação. A repetição desses episódios, mesmo com o debate e a intervenção da justiça, não impossibilita que esses discursos continuem circulando por pessoas públicas ou na internet.
A pesquisa constatou que mais de 90% dos casos acontecem no ambiente virtual. Isso porque a internet favorece um espaço seguro para a impunidade. Esse dado ressalta a importância de que as próprias redes sociais promovam alternativas para reduzir o preconceito – além de melhorias nas plataformas para policiar ataques contra determinados grupos.
Fora das redes, o discurso também surge de forma latente. Problemas relacionados à falta de comprovação e testemunhas afastam os crimes das leis, aponta Roniere. “O discurso de ódio é uma crescente, motivada na internet e fora dela”, analisa Roniere. “Quando pessoas públicas e representantes públicos endossam esse discurso, civis também se sentem confortáveis em agredir verbalmente, e até fisicamente, minorias”, declara o pesquisador.
Pensamento decolonial
“Do alto do meu pau de arara, eu via e ouvia tudo. Eu não sou colônia, eu não sou eleitor, presidente. Eu sou plural, eu sou Nordeste”, escreveu a defensora pública Karla Andrade respondendo à fala do presidente, Jair Bolsonaro. Em uma de suas lives semanais, o chefe de estado chamou assessores do governo de “pau de arara” – tipo de transporte utilizado na região nordestina. Não é a primeira vez que o presidente se refere a nordestinos de forma preconceituosa. As frases, além de escancarar xenofobia, comumente são acompanhadas de misoginia e machismo.
De acordo com Karla, há um enraizamento do pensamento colonial repetido no Brasil. Isso porque, apesar do Nordeste ser uma região com potencial econômico, ainda é visto como atrasado frente ao Sul e Sudeste. A defensora destaca que parte da fala do presidente reflete o despreparo para lidar com questões culturais no país e aponta que as declarações soam atentados contra à democracia. “Temos um grande exemplo de necropolítica no brasil e, dentre as vidas tratadas com desprezo pelo seu governo, estão a dos nordestinos – e nortistas também”, ressalta a defensora..
O problema, no entanto, não está apenas na fala do presidente, mas de toda uma cultura presente no país que ainda enxerga a região como passível de falas e atitudes ofensivas. Para reverter esse caminho, é preciso mudar a nossa memória coletiva com muita informação, frisa Andrade, citando a obra da professora Sueli Rodrigues.
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“O Nordeste foi a região mais explorada e violentada pela colonização europeia, o que explica dados de desigualdade social e racial na região”, acrescenta. “O caminho para reverter é a educação, estudando e preparando para lutar contra a inversão de valores, combatendo decisões que nos exclui, diminui e viola”, finaliza.
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