Em fevereiro de 2020, Maria Júlia acordava aos pulos para ir à escola. Aos seis, a menina iria ingressar na turma do 2° ano do ensino fundamental – uma parte do ciclo escolar importante para aprender a ler e escrever. Ela estava ansiosa para dar início a um novo período letivo. A alegria do retorno às aulas durou pouco menos de um mês. Com a iminência de uma pandemia, as aulas presenciais foram suspensas e a sala de aula substituída pela tela do celular. Somente agora, dois anos depois, Maria consegue ler e escrever as primeiras palavras.
Com José Neto não foi diferente. Apesar de já ter uma noção de leitura e escrita, ingressar na turma do 3° ano do ensino fundamental dava esperança da conclusão da alfabetização do menino no ano de 2020. A mãe, Milene Cunha, que trabalha na segurança pública de Teresina, precisou dividir a rotina de plantões e a casa para dar suporte ao filho. “Virei professora para garantir que ele aprendesse a ler e escrever na idade certa”, declara a mãe.
Três características marcam a trajetória de José e Júlia: estudantes da rede pública no Piauí, moram em bairros periféricos e encontravam-se em fase de alfabetização durante o primeiro ano da pandemia. Com as aulas suspensas, as famílias tiveram que lidar com o cotidiano em meio ao vírus, os desafios do ensino remoto e preocupações com o rendimento escolar das crianças.
Em números, houve um aumento de 66,3% no número de crianças de seis e sete anos de idade que, de acordo com seus responsáveis, não sabiam ler e escrever. Os dados da nota técnica “Impactos da pandemia na alfabetização de crianças”, do Todos Pela Educação, apontaram os efeitos negativos da pandemia de Covid-19 nos últimos anos sobre a educação pública brasileira. Ao todo, o número de crianças não alfabetizadas na idade correta passou de 1,4 milhão, em 2019, para 2,4 milhões, em 2021.
O impacto da crise sanitária reforçou ainda mais a diferença entre crianças brancas e crianças pretas e pardas. Os percentuais de crianças pretas e pardas de seis e sete anos de idade que não sabiam ler e escrever passaram de 28,8% e 28,2% em 2019 para 47,4% e 44,5% em 2021. Entre as crianças brancas, o aumento foi de 20,3% para 35,1% no mesmo período.
No relatório também é possível visualizar uma diferença relevante entre as crianças residentes nos domicílios mais ricos e mais pobres do país. Entre as crianças mais pobres, o percentual das que não sabiam ler e escrever aumentou de 33,6% para 51,0% entre os anos 2019 e 2021. Já entre as crianças mais ricas, o aumento foi de 11,4% para 16,6%.
Maura Santos, mãe de Ângelo, de seis anos, trabalha como doméstica e, desde os três, deixa-o em uma creche perto da casa onde moram, na zona Sul de Teresina. No entanto, nunca teve tempo de acompanhá-lo nas tarefas enviadas para casa. “A creche até mandava, só que eu tinha que ajeitar a casa quando chegava do trabalho, então ele nunca fazia”, diz.
Com a pandemia e o fechamento das escolas e creches, Ângelo não teve a oportunidade de continuar frequentando o ambiente escolar e, atualmente, não sabe ler nem escrever. “Ele fica com minha mãe para eu poder trabalhar”, conta Ângela. “Eu só fiz o primário e a minha mãe nem isso. Não tem como ela conseguir ensinar o Ângelo”.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aponta que a alfabetização deve acontecer entre o primeiro e o segundo ano do ensino fundamental – mas pode acontecer antes, caso haja incentivo. A especialista em educação, Mônica Carvalho explica que uma das metas da educação infantil não é a alfabetização plena – mas, com introdução de práticas no cotidiano, como incentivo à leitura ou atividades diárias de escrita, há uma maior predisposição.
Além disso, Mônica cita que o contexto também conta. Crianças que possuem o cotidiano com acesso à cultura, desde museus, bibliotecas, teatro e atividades socioculturais, no geral, são mais predispostas à leitura. Porém, pensar em uma educação além da sala de aula, ficou mais difícil com a pandemia da Covid-19 – por quase dois anos, as crianças estavam aprendendo através das telas de computadores e celulares.
Um dos caminhos para reverter esse panorama, com a reabertura total ou parcial das escolas, é entender o cenário. Por isso, Mônica destaca que é essencial a realização de diagnósticos sobre as condições que os alunos em fase de alfabetização se encontram.
Para a especialista, da mesma forma que são criados programas que aquecem a economia e outros setores, a educação também precisará ser “reaquecida”. Como sugestão, ela aponta a experiência que países como Portugal vem implementando: a criação de programas de reforço e recuperação de aprendizagem. “Houve um tempo perdido para muitas crianças e agora elas precisam recuperar”, observa Mônica. “Educação não se faz do dia pra noite, mas esse trabalho precisa ser revisado para ontem”, frisa.
Cidade fora da curva
Teresina é a capital com a melhor educação pública do país, segundo o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). É a segunda vez que o município atingiu a maior nota do ensino fundamental. De acordo com os dados do Ideb 2019, Teresina atingiu a nota de 7,4 nos anos iniciais (1º ao 5º ano) e 6,3 nos anos finais (6º ao 9º ano) do ensino fundamental.
Durante o mês de fevereiro, técnicos e pesquisadores do ‘Todos pela educação’ viajaram pelo país em busca das redes públicas de ensino consideradas de qualidade. Em conversa com estudantes, professores, gestores e técnicos eles tentaram entender e mostrar o porquê da educação ter dado certo em certas cidades e outras não.
O relatório realizado durante visita a Teresina apontou que a capital formulou e implementou políticas estruturantes que atualmente compõem o sistema educacional local desde a década de 1990. O marco inicial do processo de transformação da educação, definido pelo documento, é em 1993 – primeiro ano do 3º mandato do prefeito Raimundo Wall Ferraz (PSDB). Nessa gestão deu-se início a definição do currículo da rede e a implementação da política de avaliações, que efetivamente aconteceu em 1995, mesmo ano do falecimento de Wall Ferraz.
Para os pesquisadores, a continuidade das políticas da rede de ensino é uma característica que diferencia o caso de Teresina de diversas redes municipais do país, em que a descontinuidade é a regra e cada nova gestão busca “recomeçar do zero”. Na capital, as políticas foram construídas ao longo dos anos e foram sendo ampliadas e aperfeiçoadas a cada nova gestão.
Outro fator atribuído a essa continuidade foi o fato de um mesmo grupo político ter permanecido no poder durante muitos anos. No entanto, os pesquisadores destacam que a continuidade das políticas também foi viabilizada pela permanência de uma mesma equipe técnica na secretaria de educação por longos períodos, formada, principalmente, por professores concursados da própria rede, com profundo conhecimento da realidade da educação local.
Com a mudança administrativa da cidade, a nova gestão da prefeitura de Teresina possui um desafio: manter – ou ampliar – as políticas adotadas ao longo de três décadas. Para Mônica Carvalho, não se trata de uma tarefa fácil – no entanto, extremamente necessária para se pensar o futuro – especialmente após dois anos atípicos para a educação, em todo o país.
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