A rotina dos quase 900 moradores de Várzea Queimada, no distrito de Jaicós – sertão piauiense – segue como em quase todas as comunidades sertanejas. Trabalhos na roça, comércio e atividades escolares marcam o dia dos moradores. Ao longo da semana, algumas rezas e festividades pontuais, ou mesmo infortúnios como falecimentos, fogem do previsto das questões ordinárias do povoado.
Mas é entre as conversas marcadas por gestos e expressões nas ruas, praças e portas das casas, que a cidade vivencia um fenômeno único. Na comunidade, mais de três dezenas de moradores são surdos – a estimativa é que, de cada 25 crianças que nascem, uma é acometida por surdez. A frequência da perda auditiva na região é atribuída ao grande número de relacionamentos consanguíneos – entre primos e parentes próximos. Com a chegada tímida do ensino da Língua Brasileira de Sinais (Libras) na cidade, as famílias foram desenvolvendo uma linguagem própria, batizada de “Cena”.
A nova linguagem se tornou comum entre os moradores, sendo utilizada por surdos e não-surdos. A comunicação é dada através de gestos, que marcam as ações comuns dos moradores: ida à escola, à igreja ou trabalho na roça. Até o momento, acredita-se que há mais de 300 expressões próprias utilizadas pela comunidade de Várzea Queimada.
A nova língua chamou a atenção de pesquisadores brasileiros e do exterior, que agora estudam seu surgimento, características e como ela se desenvolveu na região. De acordo com o pesquisador Anderson Almeida da Silva, um dicionário chamado Cena/Libras está sendo organizado, registrando em fotos as novas expressões.
Segundo Anderson, a língua é o que se considera uma “língua emergente”, tendo em vista que costuma acontecer em situações extremas. No caso de Várzea Queimada, apesar de estar situada há 25 quilômetros de Jaicós, a distância do povoado fez a comunidade se reinventar diante da condição de surdez dos moradores. Casos parecidos, motivados por fatores geográficos e naturais, também foram observados em Bali – uma ilha da Indonésia conhecida por estar situada em uma região de montanhas – e ainda em uma região isolada na Turquia. A ponte aérea com pesquisas mundo afora, permite observar se a língua nativa do Piauí possui correlações nas suas expressões e desenvolvimentos com os outros países.
Na comunidade de Várzea Queimada, o fenômeno se apresenta inédito e novo no sertão. Com menos de 70 anos, acredita-se que a língua tenha começado com Lídia Barbosa – a primeira pessoa surda da região. A partir dela, a família e amigos próximos implementaram as expressões e repassaram para as pessoas surdas que nasceram depois. Hoje, a Cena atinge sua terceira geração: Laís Araújo, de 15 anos, é a surda mais jovem da região. Bilíngue, a jovem é usuária da nova língua sertaneja, mas também aprendeu Libras.
Diferente da Língua Brasileira de Sinais, a Cena não possui números ou alfabeto – a comunicação acontece totalmente por expressões e gestos próprios. Com a institucionalização do ensino, no entanto, a nova linguagem sofreu uma tentativa de apagamento – a intenção era que a Cena fosse substituída pela Libras. Foram os próprios moradores que insistiram em preservar o uso da Cena, para incluir os surdos mais velhos.
É o caso de Silvana Barbosa, mãe de seis filhos, dos quais três são surdos. Sem acesso ao aprendizado de Libras, por muito tempo, a forma de se comunicar com os filhos foi através da Cena. Atualmente, todos sabem usar a língua, seja com a família, seja com a própria comunidade. “É uma nova forma de educar, mas também de fazer com que eles sejam incluídos”, diz Silvana. “Foi a nossa forma de socialização”.
Laboratório a céu aberto
O pesquisador Anderson Almeida destaca que o fenômeno do sertão do Piauí é algo extremamente raro. No que diz respeito à língua oral, ocorre uma extinção de alguns idiomas, mas na linguagem de sinais, o caso é inverso. Porém, para provar essa sentença, é necessário observar comunidades isoladas por no mínimo 50 anos – como o caso de Várzea Queimada.
Em aspectos científicos, simular esse experimento e submeter em um Comitê de Ética seria impossível e desumano. Mas, o caso da comunidade aconteceu de forma natural e se adaptou às circunstâncias dos moradores. “Temos basicamente um laboratório a céu aberto e uma língua própria no sertão do Piauí”, frisa o pesquisador. “Isso é extremamente raro e inédito”, pontua.
Por entender que a língua é uma manifestação cultural, e por se tratar de uma língua relativamente nova, um grupo formado por pesquisadores de várias universidades brasileiras que investigam línguas de sinais, busca financiar a impressão do dicionário Cena-Libras. Este será o primeiro dicionário no mundo entre duas línguas de sinais. “Além de garantir um registro linguístico, queremos presentear os surdos com esse material impresso”, destaca Anderson. “É uma maneira de fazê-los sentir sua língua valorizada”.
Para ajudar na campanha de financiamento: https://app.benfeitoria.com/projeto/impressaodicionariolinguadesinaiscena
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