Era tarde quente de quarta-feira quando algo assustou e interrompeu o lazer de banhistas, no povoado Boquinha, zona Sudeste de Teresina. Era o corpo sem vida de uma adolescente, no meio do matagal. Acionada, a Polícia Militar isolou a área e constatou algo no corpo da vítima que chamava atenção: uma tatuagem em alusão ao Bonde dos 40.
Desde sábado, 23 de abril, Maria Camila Ferreira Silva estava desaparecida. A família, que mora na Vila Irmã Dulce, zona Sul da capital, havia recebido através do Whatsapp uma foto desesperadora: Camila, de apenas 16 anos, aparece chorando e com os cabelos raspados. A polícia acredita que esta foi a última imagem da garota com vida.
O Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil do Piauí, investiga se o assassinato tem a ver com o que convenciounou-se chamar de “Tribunal do Crime”, uma espécie de sistema paralelo de julgamento e punição criado pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) e aplicado àqueles que prejudicam a facção. Os vestígios da violência simbólica levam a crer que Maria Camila foi torturada e humilhada antes da execução: queimaduras de cigarro na pele, marcas de coronhadas na cabeça e cabelos raspados são típicos da punição de facções criminosas.
Camila é só mais uma adolescente que estampou as páginas policiais nas últimas semanas. Cada vez mais nomes ou rostos femininos aparecem ligados a notícias envolvendo facções no Piauí – desde o ano passado, execuções, prisões e ameaças a mulheres dão pistas da participação feminina acentuada em grupos e facções criminosas pelo estado.
Maria Camila, Kelly Rayane e Dara Nascimento tiveram em comum seus nomes expostos nas manchetes das páginas policiais e mortes brutais. As adolescentes foram assassinadas por membros de facções criminosas que tomam cada vez mais espaço no Norte e Nordeste brasileiro, como apontam estudos.
O Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), duas facções criminosas surgidas respectivamente em São Paulo e no Rio de Janeiro, e o Bonde dos 40, oriundo do Maranhão, estão moldando a fogo e sangue o cenário da segurança pública nessas duas regiões do país. O Norte e o Nordeste, juntos, registraram um aumento de 68% nas taxas de homicídios, de acordo com dados do Atlas da Violência divulgado no ano passado.
No Ceará houve um aumento de 322% nos casos de assassinatos de meninas com idade entre 10 e 19, no último ano. As execuções, quase sempre acompanhadas por sessões de tortura, além de anunciadas e expostas nas redes sociais, são motivadas pela rivalidade entre as facções criminosas que disputasm o controle da região. O aumento expressivo do homicídio de jovens fez do estado o mais perigoso do país para mulheres.
“Essas características do nosso estado vizinho, se assemelha com a do Piauí, mas as pesquisas sobre violência no estado ainda não possuem esse recorte de gênero relacionada à morte por envolvimento em facções”, explica Marcondes Brito, pesquisador em segurança pública.
A participação feminina em grupos criminosos não é exatamente uma novidade. Em sua dissertação de mestrado sobre a construção de identidades juvenis em situação de tráfico de drogas, Marcondes identifica, através de relatos comunitários e de jornais da época, umas das primeiras mulheres a participar ativamente do tráfico em Teresina. “No final da década de 90 e início dos anos dois mil, surgem relatos da Negra Luzia, uma das primeiras traficantes da zona Sul de Teresina”, destaca o pesquisador. “Então, as mulheres sempre estiveram presentes nesse contexto”, diz.
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A morte dessas meninas revela uma característica cada vez mais destacada por pesquisadores: o machismo que atravessa a atuação de gangues e facções criminosas. Majoritariamente masculinos, esses grupos, além de impor controle sobre espaços urbanos, como favelas e comunidades dominadas por eles, também querem domar o corpo das mulheres que vivem em torno do tráfico.
Em dezembro do ano passado, no litoral piauiense, muros, portões e calçadas de residências foram pichados com ameaças de morte explícitas a mulheres. Pelo menos oito delas foram citadas e ameaçadas nominalmente – a mensagem nas pichações dão ordem para que as mulheres deixem o local onde moram, caso contrário seriam assassinadas. Após as ameaças, três mulheres foram mortas na região. Um dos homicídios aconteceu dentro de um shopping.
Não mexe com as minas
A entrada de mulheres, no geral, pertencentes a uma camada mais pobre da sociedade, na rede do tráfico de drogas, costuma ser uma estratégia de suprir a lacuna de um sentimento de pertença que marcam as vidas de muitas meninas na periferia. É o que constata Mariana Barcinski no artigo “Mulheres no tráfico de drogas: a criminalidade como estratégia de saída da invisibilidade social feminina”.
“Excluídos de um sistema social que não reconhece sua existência no cotidiano, como consumidores ou em suas necessidades básicas de proteção, educação e trabalho, esses jovens optaram por atividades criminosas para se tornarem visíveis”, diz Barcinski na pesquisa.
A busca pelo respeito dentro da comunidade fez com que Sara*, aos 20 anos, quisesse fazer parte de uma facção. oestadodopiaui.com conversou com sua irmã Maria* em busca de entender as motivações que a levaram a integrar o grupo. Para a segurança das entrevistadas, suas identidades e a região onde moram serão omitidas nesta reportagem.
“Ela sempre foi bem danada, ficava com vários meninos aqui do bairro, e as pessoas comentavam, né”, diz. “Depois que ela se envolveu com um menino que faz parte da facção, ela vive dizendo que agora ninguém é doido de falar mal dela aqui no bairro, se não morre”, conta Maria em voz baixa, com medo de ser ouvida por outras pessoas.
Para Barcinski, a inserção de jovens na atividade do tráfico propicia o que alguns autores chamam de uma “visibilidade perversa”, conquistada através da violência e da prática infracional. Violentados por uma sociedade que os exclui, os jovens violentam aqueles que as condenam a tal invisibilidade – reforçando assim o estigma de “pobre e criminosa” a ela atrelado.
A participação feminina no tráfico e nas facções, no entanto, ganha contornos especiais. Uma vez que o tráfico é reconhecido como uma atividade predominantemente masculina, participar do grupo dá às mulheres traficantes a possibilidade de distinguir-se ainda mais de outras mulheres: elas se tornam visíveis e diferenciadas ao desempenharem tarefas reconhecidas como masculinas. “A saída da invisibilidade, no caso das mulheres envolvidas no tráfico, se dá principalmente pela diferenciação, pela afirmação de um poder antes exclusivo dos homens e pelo reconhecimento externo desse poder”, diz no estudo.
Assim como Sara, muitas garotas acabam se envolvendo com jovens que fazem parte dos grupos criminosos – assim sentem-se protegidas. Maria** conta que muitas colegas de sua escola – localizada no bairro onde mora – comentam sobre os meninos que fazem parte das facções. “Quem fica com algum menino de lá parece que ganhou um prêmio, a pessoa fica logo conhecida e ninguém mais tem coragem de tirar onda com ela, por isso muitas meninas querem ficar com eles”.
Marcela Castro, socióloga e membro do Núcleo de observatório de Segurança Pública do Piauí, ressalta que a vulnerabilidade social e a busca por poder é apenas uns dos fatores que fazem com que essas meninas entrem nesses grupos. Outro fator em destaque é a relação afetiva que muitas meninas têm com jovens de facções. “Depois que entra e se envolve, não consegue mais sair”, afirma.
Para além do recorte de gênero, Marcondes acredita que a crueldade a qual essas meninas são submetidas em suas mortes deve-se também à notoriedade que esses casos têm na mídia. “A perversidade é um elemento que está presente na atividade faccional”, aponta o estudioso. “Quanto mais perverso você puder ser, mais você ganha”.
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