Quando o galo canta no quintal, a agricultora Líria Maria Aquino, de 33 anos, já tem levantado da cama. Os pais, também agricultores, a criaram em contato com a terra, plantando de tudo e criando animais no Quilombo Paquetá, na cidade de São João da Varjota – região do sertão piauiense. Começou a trabalhar na roça, ao mesmo tempo em que entrou na escola – e nunca mais parou. Na época, estudar era mais difícil, havia poucas escolas na região. Mas isso não foi empecilho para que ela e a irmã fossem incentivadas pela família, que via na educação uma forma de ascensão social. Para não abandonar os estudos, precisou trocar o teto dos pais por casas de famílias na cidade de Oeiras. A negociação era simples: auxiliava nos serviços domésticos em um período, estudava no outro.
Foi assim até os 19 anos, quando teve o primeiro filho e parou os estudos. Só voltou para a sala de aula quase uma década depois. Líria matriculou-se no ensino médio novamente, concomitante ao curso técnico de agropecuária, na Escola Familiar Agrícola Dom Edilberto II – como essas, há mais outras dez distribuídas no Piauí, que funcionam em alternâncias de regimes quinzenais, nas zonas rurais, para valorizar e cultivar a cultura do campo.
A turma era majoritariamente masculina. Apenas Líria, a filha de seis meses – que levava para assistir às aulas com ela – e outra colega, formavam a ala feminina que se formou à época. Tatiane, a bebê, precisava ser amamentada e não tinha como ficar em casa, então participava das aulas junto à mãe. Os colegas se revezavam com Líria para segurar, alimentar e ninar a criança para dormir nas salas da escola. Tudo isso para que a mãe pudesse estudar. A escola ficava a um quilômetro da casa e, por quase dois anos, Líria fazia o retorno a pé com a filha nos braços. “Minha filha se formou comigo”, brinca a agricultora, lembrando da caminhada.
Quando se graduou, Líria nem imaginava que voltaria dois anos depois, como professora da mesma escola. Assim que abriu o seletivo para professor na instituição, em 2018, a agricultora concorreu e foi aprovada. As condições que encontrou enquanto aluna não foram as mesmas quando professora. A escola, por outro lado, estava muito melhor – da alimentação aos alunos, até equipamentos para aulas práticas. “As condições de um aluno hoje são bem melhores, ainda bem”, pontua. A carreira de professora desafia as estatísticas de êxodo juvenil dos quilombos. Para muitos jovens, trabalhar e estudar significa ficar longe das suas famílias – impactando diretamente nas tradições da comunidade. Mas para Líria, ir embora nunca foi uma opção. “Pelo contrário”, destaca.
Se o campo foi o motivo que a colocou na sala de aula, foi também o que fez ela sair. Para se dedicar à roça, pediu exoneração da escola neste ano. A conclusão do curso superior em Educação do Campo na Universidade Federal do Piauí (UFPI) também pesou na escolha. Ela precisava – e queria – se dedicar a novos projetos.
Com mais tempo em casa, a agricultora faz de tudo um pouco: ajuda os filhos com a escola, cuida dos animais e das plantações – as hortas com cebolinha, cheiro verde, alface, beterraba e algumas plantas medicinais, como o boldo, hortelã e malva do reino. No tempo disponível, organiza as atividades dos Movimentos dos Pequenos Agricultores, onde é dirigente. No meio de tudo isso, consegue tempo para fazer tranças – símbolo de ancestralidade entre as mulheres negras. Boa parte das atividades aprendeu com o pai e a mãe, que aprenderam com os pais deles, em uma cultura de saberes repassados entre as gerações, na família e nos quilombos. Líria agora repassa para os quatro filhos.
Machismo sem fronteiras
O Brasil tem hoje 3.475 comunidades quilombolas em todo o país, do Sul até a Amazônia. Apenas 404, menos de 6%, são territórios oficialmente reconhecidos. O território do companheiro de Líria, Francisco Martins, é um dos 3.260 identificados como outras localidades quilombolas, mas sem reconhecimento.
Dos estabelecimentos localizados no campo, 18,7% são governados por mulheres – apontou o Censo Agropecuário de 2017. Apesar de cuidarem da casa e das plantações em uma dupla jornada, grande parte dos esforços femininos são invisibilizados. Entre 2006 e 2017, o número de mulheres aumentou dentro dos estabelecimentos agropecuários, mas o quantitativo segue minúsculo: 91,3% em cooperativas são homens, enquanto 8,7% são ocupados por elas. Na família de Líria, por exemplo, aprendeu com o pai e a mãe sobre o cuidado no campo. Com a mãe, em particular, aprendeu a trançar cabelos, o manejo com as hortas, extração do coco babaçu e se tornou uma exímia pescadora. A mãe gostava de cuidar dos animais, mas nunca foi bem reconhecida por isso. “Tudo isso faz parte de um processo histórico, não é?”, analisa. “Ela fazia de tudo, assim como meu pai, mas era um trabalho invisível”.
As mulheres ainda são as mais vulneráveis no campo, principalmente nas regiões do semiárido. Comumente, os homens formam o público-alvo de programas de crédito e assistência técnica. Quando, raramente, uma oferta de benefício é dada às mulheres, o machismo se torna um dos primeiros obstáculos a ascensão delas dentro da comunidade. Não são raros os exemplos de homens que tentam forjar os benefícios direcionados às companheiras. Na região da Varjota, a comunidade foi contemplada com o Projeto de Fundo de Desenvolvimento Agrário, uma ação voltada para capacitar apenas jovens e mulheres. Muitas faltaram, por causa dos maridos e obrigações impostas no âmbito doméstico. As poucas que compareceram tinham receio de responder aos questionamentos do programa. “Teve mulher que disse que não podia responder porque o marido não deixava, ou só falava com ele presente”, disse Líria.
É dentro de assentamentos, quilombos e comunidades tradicionais que a figura feminina faz a diferença. Muitas não têm escolhas e acabam ficando em casa, cuidando da propriedade e dos filhos, enquanto os companheiros arriscam nas zonas urbanas em busca de emprego. Por isso, a balança da desigualdade de gênero tende a pesar para o lado das mulheres, que sem autoridade para créditos e benefícios, restam à mercê da figura masculina.
Em São João da Varjota, o número de mulheres tomando os seus espaços tem superado a participação dos homens. Na Associação de Moradores, dos 80 associados, 92% são mulheres que trabalham no campo. A grande maioria nunca teve acesso ao ensino formal, e esperam que seus filhos possam alcançar as Escolas Familiares Agrícolas para obter qualificação e ensino de qualidade. A internet pouco a pouco tem se tornado mais acessível para as casas. O ensino remoto, durante a pandemia, foi uma realidade, a princípio, assustadora – mas que ficou. De casa, conectados, às novas gerações começam a se qualificar sem precisar migrar de seus lugares de origem ou apoiar-se na casa de parentes em outras cidades – como a Líria, quando jovem, precisou.
O quilombo Potes, onde mora, não é mais o mesmo de quando partiu. As casas de taipa e sem reboco foram sendo substituídas por tijolos e alvenaria. Aos poucos, a qualidade de vida tem chegado aos moradores, assim como a adesão de benefícios para o campo. Líria vê o tempo passando com esperança, na convicção de que o mundo será mais justo para suas filhas e o filho. Na sua casa, a educação é pautada para todos de forma igual, independente do gênero. Não se considera uma mulher completamente feminista, “apenas 98%, porque ainda preciso quebrar os resquícios que o machismo deixou em mim”, explica. “Mas já quebrei muitas barreiras”.
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