domingo, 24 de novembro de 2024

“Eu sou tudo o que eles não esperavam”

Em profissões elitizadas, mulheres negras são as menos representadas, aponta pesquisa

17 de junho de 2022

De jaleco branco, Júlia Lima não passa despercebida nos corredores de um hospital privado de Teresina. Em 40 anos como médica ela ainda precisa explicar que não é enfermeira ou técnica de enfermagem para outros funcionários. Os pacientes também demoram a reconhecê-la como profissional da medicina. “Me pedem informações sobre onde podem levar os exames para o médico”, conta Júlia. “E a médica sou eu”.

A situação não é diferente para a advogada Carmem Ribeiro. Em uma audiência, um membro do Ministério Público a confundiu com o réu. A situação, com a mesma pessoa, se repetiu em um segundo momento, dias após o ocorrido. “Tive que perguntar para ele se ele não estava acostumado a ver advogadas negras em audiências”, relatou à reportagem.

Carmem Ribeiro, advogada (Foto: arquivo pessoal)

O cotidiano de Júlia e Carmem fazem parte do que motivo a pesquisa de doutorado de Adriana Sousa, de São João do Piauí, uma doutoranda da USP que teve um dos capítulos da sua tese premiado. O estudo “Eu sou tudo o que eles não esperavam: mulheres negras entre agência e estrutura racial” versa sobre mulheres negras em profissões elitizadas no Brasil.

No imaginário social brasileiro, segundo a pesquisa, as profissões elitizadas são representadas pelos profissionais da medicina ou advocacia. Ainda no período imperial, essas profissões foram pensadas pela elite brasileira para manter um padrão das famílias mais abastadas. A ideia era fazer uma manutenção não apenas de ganhos econômicos, mas do prestígio que essas profissões representavam. 

Por outro lado, as duas profissões são ainda as que mais possuem um abismo social. Conforme o levantamento Demográfico Médico do Brasil, publicado em 2020, quase 70% dos concluintes do curso se declaram brancos. Apenas 3,4 se autodeclararam negros e 25% pardos. Os números de pessoas pretas chegam a ser menores quando observados em faculdades privadas – onde em torno de 76% são brancos.

Além do racismo velado que Júlia vive dentro dos hospitais ela acredita que, nos últimos anos, boa parte da população negra tenha perdido acesso à informação. Dentro das escolas públicas, onde se concentra parte das juventudes pretas, o acesso remoto evidenciou as disparidades do ensino privado e público. Com esse retrocesso no ensino, é mais difícil que meninas negras possam ocupar espaços de poder no futuro. 

O panorama não é diferente no universo do sistema judiciário. Quanto mais alto o cargo dentro dos tribunais, menos mulheres negras aparecem. Em 2021, pela primeira vez, o número de advogadas superou o de advogados no país. Atualmente, são mais de 663 mil mulheres e quase 622 mil homens na Ordem. Os dados, entretanto, não permitem entender como isso se dá em termos raciais, mas uma pesquita do Ceert – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade – indicou que apenas 2% dos sócios dos maiores escritórios de advocacia do país são negros. Entende-se, portanto, que o número de mulheres negras nestes cargos é ainda menor. 

A situação se reprete no Supremo Tribunal Federal: apenas três negros integraram a corte, em toda a história: Joaquim Barbosa, Hermegenildo de Barros, nomeado em 1919, e Pedro Lessa, ministro entre 1907 e 1921. Nenhuma mulher negra esteve na Suprema Corte.

Júlia Lima, médica (Foto: arquivo pessoal)

Nos Tribunais Superiores essa baixa representatividade é explícita: apenas 1,3% se declaram pretos e 7,6%, pardos –  segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2018. Segundo levantamento realizado pelo site Migalhas, em novembro de 2021, de 90 ministros, divididos entre cinco tribunais, apenas 14  são mulheres e 2 são negras. 

O pouco espaço de representatividade apresentado pelos números foi o cenário que Carmem precisou enfrentar no início da carreira. Lugares embranquecidos e fora da sua realidade a fazem repensar sobre seu posicionamento. Além da invisibilidade, Carmem precisou lidar com o silenciamento. “Mulheres negras são invisibilizadas durante toda sua trajetória e, quando conseguem ocupar um espaço branco e masculino, são silenciadas”.

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Categorias: Reportagem

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