domingo, 24 de novembro de 2024

Por causa da minha cor

Crimes de racismo crescem no Piauí em 2021, mas subnotificação pode ser ainda maior

23 de junho de 2022

Edição Luana Sena

Amanda Sávia é uma mulher negra piauiense, de 27 anos. Quando viajou para Porto Alegre (RS), a cidade com maior desigualdade entre negros e brancos do país, de acordo com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o racismo lhe encontrou. Em um edifício residencial da cidade, quando precisou ir à portaria para receber um lanche por delivery, uma moradora do prédio falou que ela não poderia utilizar o edifício por causa da sua cor. 

Foi a primeira vez que a jornalista sofreu preconceito racial abertamente. Antes disso, sabia que conviver com o racismo era parte do seu dia. “Eu sinto que incomodo pessoas pela minha cor e cabelo mais crespo”, destaca Amanda. “Sinto olhares, mas não é verbalizado”, conta à reportagem. 

Longe de casa, o racismo e a xenofobia vieram acompanhadas do descaso policial. Ao prestar queixa, os policiais que lhe atenderam perguntaram se ela não havia interpretado mal o episódio racista. Amanda desistiu de realizar o boletim de ocorrência. O crime seria classificado como injúria racial, que tem pena prevista de um a três anos de prisão, quando a ofensa é direcionada a uma pessoa. Em crimes de racismo, a pena chega a até cinco anos, quando a agressão é contra uma coletividade.

Nilton Nascimento: “Nunca pensei que passaria por uma situação dessa” (Foto: reprodução da TV)

O episódio tem feito Amanda duvidar dos serviços de justiça e amparo policial em casos de injúria e racismo desde então. Recentemente, ela teve conhecimento do que aconteceu com o técnico de enfermagem Nilton César do Nascimento, de 46 anos, que sofreu injúria racial em um shopping da zona Leste de Teresina. “Sempre que vejo alguém denunciando que sofreu injúria, eu realmente não tenho esperanças”, lamenta a jornalista. 

Segundo Nilton, ele estava com sua cadela no shopping quando um homem se aproximou para tocar no animal. Sem a vacinação e com apenas dois meses, o técnico pediu, por precaução, que o desconhecido não tocasse no animal. Revoltado, o homem começou a chamá-lo de “negro safado”. Populares ao redor chamaram a polícia, mas quando uma guarnição chegou, o homem já tinha ido embora do local. “Eu vejo os casos na televisão, mas nunca pensei que passaria por uma situação dessa”, declarou em entrevista à TV Clube. “Só por causa da cor da minha pele. Eu sou julgado por conta disso? E o meu caráter?”. 

No primeiro semestre de 2021, casos como o de Amanda e Nilton eram maiores do que todos os casos de racismo em 2020. Os dados foram disponibilizados pela Secretaria de Segurança Pública do Piauí (SSP/PI), a pedido do oestadodopiaui.com. A média mensal de casos de injúria racial, no ano passado, apresentou aumento de aproximadamente um registro. Enquanto as delegacias estaduais registraram 16 casos por mês em 2020, no ano passado, o número saltou para 17 casos ao mês – totalizando 106 denúncias. 

Mas acredita-se que o número seja bem maior do que os números contabilizados pela Polícia Civil do Piauí. Isso porque, a maioria das vítimas sequer chegam a registrar boletim de ocorrência. Entraves como a desinformação acerca da lei, mas também a falta de confiança nas instituições públicas, fazem com que as vítimas reprimam a violência. “Quando falamos de racismo, estamos falando de uma violência que por anos foi silenciada e tratada como normal”, explica a pesquisadora Iris Conceição. 

Para ela, em um país racista e com uma cicatriz da escravidão, o próprio sistema coíbe as denúncias e deslegitimam as vítimas – como o ocorrido com Amanda, em Porto Alegre. “A polícia, os órgão públicos da justiça também fazem parte dessa estrutura racista, então naturalmente a população negra tende a não confiar”, complementa. 

Denunciar o racismo é um passo importante, mas ainda muito recente e pouco divulgado entre as camadas mais pobres. “Pessoas negras, mais velhas, com pouco ou nenhum acesso à educação, geralmente passaram a vida toda sofrendo práticas discriminatórias e não veem sentido em uma lei”, complementa Íris. Um dos passos para reverter esse panorama, aponta a pesquisadora, seria um engajamento de toda a sociedade para não permitir que essas situações aconteçam – principalmente à luz do dia. “Qualquer pessoa pode denunciar o racismo, todos podem ser aliados da luta antiracista”.

O boletim de ocorrência contra racismo pode ser feito em qualquer delegacia. Caso não haja unidade especializada em crimes dessa natureza, basta ir à circunscrição do Distrito. Em casos de racismo ou injúria racial na internet, é preciso procurar a delegacia de crimes virtuais. Com a comunicação do crime, o Ministério Público é acionado. 

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