sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Quem tem coragem de falar de aborto?

Descriminalização do aborto não aparece em planos de governo, sabatinas nem debates com candidatos do Piauí

27 de setembro de 2022

Edição Luana Sena

As poucas casas de alvenaria se destacam entre as tantas moradias precárias no povoado onde a menina de 11 anos, grávida pela segunda vez vítima de estupros, vivia com a família em Teresina. Algumas moradas não têm água, tampouco luz elétrica. No bairro, na parte rural da zona Leste, as ruas são esburacadas e parecem abandonadas pelo poder público – até o transporte público é precário e escasso. Para driblar a fome e o desemprego, a maioria da comunidade vive das parcelas do Auxílio Brasil. Grande parte dos moradores ora vive de bico, ora estão desempregadas. 

Em meio à pobreza, um dado assusta para quem não pertence ao lugar: uma parcela das meninas e adolescentes está grávida. A prevalência de gestação na adolescência nessa região é alta, declarou anonimamente uma moradora. As que não conseguem remédios caseiros ou pílulas abortivas, antes dos 18 anos já se tornaram mães. Quem não consegue ou opta por interromper a gravidez, segue a gestação sem pré-natal ou qualquer acompanhamento. 

Na pequena UBS (Unidade Básica de Saúde) onde a criança de 11 anos descobriu a primeira gravidez, a coordenadora da unidade, Paloma Santos, informou à Folha de S. Paulo que das quase 70 gestantes a consultarem na unidade, pelo menos 20 são menores de idade. Nos últimos meses, não é somente a gravidez precoce que tem assolado a vida das jovens na localidade. Agora, grande parte das adolescentes tem sido diagnosticada com sífilis.

Dados da Secretaria Estadual de Saúde (Sesapi) mostram que, no Piauí, 1.697 meninas de até 14 anos deram à luz nos últimos quatro anos. Os maiores casos de complicações na gravidez acontecem na adolescência. O Ministério da Saúde aponta que, a cada mês, pelo menos uma criança de 10 a 14 anos morre em decorrência de complicações na gestação. 

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Diante da situação, a menina de 11 anos precisou ser levada para um abrigo. A mãe é dona de casa e recebe o benefício do governo, e o pai faz serviços esporádicos de capina. Inicialmente, a mãe não queria que a filha interrompesse nenhuma das gestações, embora o pai tivesse concordado. Na última semana, os responsáveis entraram em consenso para que a criança pudesse fazer a interrupção da gravidez. O caso segue para uma junta médica da Maternidade Dona Evangelina Rosa, que deve analisar a possibilidade do aborto. Com o consenso dos pais, a Defensoria Pública não deve entrar com nenhuma ação para impedir o procedimento, tendo em vista o direito da menor de idade e a autorização dos responsáveis.

O caso da menina grávida pela segunda vez por conta de estupros teve repercussão não apenas no Piauí, mas em todo o Brasil. Porém, em meio à disputa eleitoral, o tema não foi discutido em sabatinas, debates e tampouco aparece nos planos de governo dos candidatos ao governo estadual. A reportagem entrou em contato, individualmente, com cada candidato para questioná-los sobre o tema.

Dos nove candidatos ao governo do estado, somente três citaram ações como a descriminalização do aborto. Apenas dois observaram o assunto sob o prisma de gênero, saúde pública e educação sexual. Uma candidata sugeriu participação social, propondo uma ouvidoria com representações femininas sobre o assunto. Dois candidatos trataram o assunto com tom conservador. Gessy Fonseca (PSC) e Sílvio Mendes (União) não versam sobre o tema em seus planos de governo e, após diversas tentativas de contato com as suas assessorias, a reportagem não teve retorno. O espaço segue aberto para esclarecimentos.

Madalena (PSOL) é a favor da descriminalização do aborto. Isso porque, até nos casos em que o estado é obrigado a assistir, ainda costuma haver impossibilidades de realizar as interrupções gestacionais. “É escandaloso quando é colocado em discussão se deve ou não, uma menina de 11 anos estuprada duas vezes, abortar”, relembra o caso. “Só demonstra o tamanho do machismo estrutural do Piauí”. Para Madalena, até as mulheres, vítimas de violência pelo estupro e amparadas na lei, são vítimas do fundamentalismo religioso e do machismo. Ela destaca que conversar sobre o aborto é garantir de forma firme que não haverá retrocesso quanto às leis existentes e outras que podem surgir para defesa das mulheres. 

Geraldo (PSTU) afirma que o tema tem causado desconforto moral na sociedade e não é um assunto fácil de ser abordado. “A mulher deve ser a única a decidir sobre o seu próprio corpo”, afirma. “Isso inclui também a decisão de dar continuidade a uma gestação ou não. Somos pelo direito das próprias mulheres tomar tal decisão, sem a interferência de qualquer instituição contrária à sua vontade”, afirma o candidato. Ele classifica como abuso qualquer criminalização da mulher com uma gravidez indesejada.  “Quando uma mulher precisa recorrer ao aborto, de fato algo falhou: a escola pública falhou na educação sexual, o estado falhou em prover ou facilitar o acesso aos métodos contraceptivos e políticas públicas de atenção à mulher trabalhadora também falharam, o método falhou em evitar a gravidez”.

A candidata Lourdes Melo (PCO) afirmou que não tem propostas. Porém, é um assunto que deve ser discutido. Segundo ela, mulheres ricas e pobres recorrem ao aborto. No entanto, apenas as pobres são perseguidas e ameaçadas. Lourdes se coloca a favor da descriminalização e, caso eleita, pretende trabalhar essa ideia com a sociedade e os poderes. 

Gustavo Henrique (Patriota), quanto ao aborto, reforçou que é obediente à constituição. O candidato não foi claro ao citar que é preciso aplicações de políticas públicas sociais visando à todos, e não grupos. Para esse tema, ele acredita que é preciso políticas de estado para proteção e acolhimento das famílias, mulheres e crianças. “O governador não pode ir de encontro à Legislação vigente”, finaliza. 

Capitão Diego Melo (PL) destacou que é “contra o aborto porque é a favor da vida”. Porém, iria trabalhar políticas voltadas à assistência de mulheres vítimas de violência sexual. “Não há crime mais grave do que matar uma criança indefesa no ventre das mães”, finaliza.

O candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Rafael Fonteles, afirmou que como cidadão e candidato, é contra. Com exceção dos casos permitidos pela Lei. Ele justifica o posicionamento pela formação cristã na vida familiar, escolar e na Igreja Católica. No entanto, reforça que tem compromisso com o fortalecimento da assistência à saúde da mulher, materno-infantil e à mulher em situação de violência. Em resposta ao oestadodopiaui.com, garantiu que, caso eleito, deve implementar políticas de segurança, saúde e serviços de assistência social para mulheres em situação de violência. 

Ravenna Castro (PMN) destacou ser a favor do aborto apenas em casos de estupro e vulneráveis. Ela foi a única candidata que propôs participação social com mulheres. “Elas precisam ser consultadas sobre o tema”, declara. Castro acredita ser, até agora, a única candidata a falar publicamente sobre o assunto, desde que veio à tona o caso da criança que engravidou pelo estupro. “As pautas de interesse das mulheres são minha prioridade”, disse sem, no entanto, detalhar propostas.

Assunto invisível

Em quase cinco décadas de redemocratização, quem busca ocupar um cargo político ainda tem dificuldades de falar ou se posicionar sobre o aborto. O assunto é evitado para não espantar eleitores ou afastar uma majoritária parcela da sociedade que ainda se mantém contra. Para a médica obstetra Keliany Duarte, o tema é tabu até mesmo entre os candidatos mais progressistas. 

As omissões sobre o aborto coincidem com os levantamentos feitos na esfera pública. Segundo pesquisa do IPEC, quase 70% dos brasileiros dizem ser contra a legalização do aborto. Este número cresce entre evangélicos (84%), pessoas que fizeram apenas ensino fundamental (80%) e moradores do Centro-Oeste (77%).

Por dividir opiniões, os candidatos preferem manter o assunto guardado a sete chaves do que levá-lo à discussão. “Mesmo quem fala sobre aborto como uma questão de vida, esquece de lembrar que também há a vida das mulheres e adolescentes nessa fração”, destaca a médica. Enquanto isso, a maior parte das mulheres que fazem abortos clandestinos pertence a camadas mais empobrecidas da sociedade. Elas acabam sendo expostas a infecções e complicações nos procedimentos, e acabam vindo a óbito.

Segundo dados do Ministério da Sáude, quatro em cada 10 abortos legais no Brasil são feitos fora da cidade onde as mulheres moram. Dos 13 países que integram a América Latina, seis legalizaram ou descriminalizaram a o aborto. Argentina, Chile e Colômbia são os mais recentes. Os países vizinhos têm sido procurados por mulheres que buscam interromper a gravidez. “Por outro lado, apenas mulheres com maior poder aquisitivo conseguem realizar o aborto de forma segura”, destaca Keliany.  

Números também do Ministério, apontam que quase um milhão de mulheres recorrem a abortos induzidos. Desse número, 250 mil precisam ser hospitalizadas. Os mesmos dados revelam que uma mulher morre a cada dois dias por aborto inseguro. Como solução para aproximar o debate dos candidatos – progressistas ou não -, a obstetra destaca a abordagem do assunto sobre um viés de saúde pública – e, principalmente, planejamento familiar. A médica julga que o principal alvo desse assunto devem ser adolescentes e jovens.

Enquanto o tema não se tornar próximo da população e se fizer presente no debate público, para Keliany, a previsão é que as mortes de mulheres em busca do aborto clandestino continue crescendo. Sem a devida orientação sexual e fortalecimento das políticas de gênero, não só os índices de gravidez não desejada devem aumentar, como também as doenças sexualmente transmissíveis – bem como a realidade no povoado da menina de 11 anos violentada. “É preciso tornar esse assunto público porque é um assunto de saúde”, comenta a médica. “Não adianta fechar os olhos: o problema vai continuar existindo”.

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