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A militância tem rosto de mulher

Para movimentar a política nas camadas sociais, militância feminina se organiza em busca de direitos básicos e respeito nos espaços de poder

29 de setembro de 2022

Edição Luana Sena

*Esta reportagem integra a série “Francisca Trindade” ♀, sobre a representatividade de gênero na política. Participaram Vitória Pilar (reportagem), Luana Sena (edição) e Aline Santiago (infografia).

 

Lourdes Melo tentava a todo custo entrar na cerimônia de entrega do título de doutor honoris causa para o ex-presidente Lula, na Universidade Federal do Piauí (UFPI).  Era setembro de 2017. A cerimônia era um evento fechado, mas a recém chegada na instituição, pelo curso de Letras, Teônia Pereira, achou injusto que a militante anticapitalista ficasse de fora – logo ela que tanto espalhava panfletos do líder político na cidade. “Eu não era da militância, nem nada, mas só conhecia os movimentos organizados por causa dela”, contou. Depois de muita insistência da jovem, Lourdes entrou na sala e assistiu a cerimônia.

Meses antes, em junho, a mesma impulsividade fez Teônia parar o Restaurante Universitário (RH) no horário do jantar. Ela relembra como se fosse hoje: o cardápio do dia era cachorro-quente e, enquanto havia uma fila gigantesca para entrar, um grupo de estudantes insistia em furá-la arbitrariamente. Foi quase uma hora e meia de discussão no salão. Funcionários do RU ficaram do lado dela quando a segurança chegou. “Naquela hora eu vi que a injustiça saia de todo lugar possível, até dentro da própria universidade”, explica Teônia. 

Ali nos corredores da UFPI a jovem forjou sua militância. Ela entrou para o movimento estudantil e se filiou ao Partido dos Trabalhadores. Hoje, tem liderado e organizado atos e manifestações de parte da juventude do PT. No começo deste ano, preocupou-se quando viu a quantidade irrisória de jovens com título de eleitor. Sozinha, com o próprio computador, foi responsável pela emissão online de quase 200 deles, na periferia de Teresina. 

Teônia faz parte da liderança jovem do PT (Foto: arquivo pessoal)

Como mulher, ela não passa despercebida das violências políticas. “Ninguém pergunta pro homem quais são suas pautas, porque o espaço dele na política já é legítimo”, ressalta. “Agora, quando indagam a gente e as nossas pautas são saúde e educação, debocham, falando que mulher trata apenas disso”, complementa. A realidade de Teônia, hoje professora, é narrada pela antropóloga Carla Costa Teixeira. Se, antigamente, a clandestinidade era comum para as mulheres que militavam na política, hoje elas são a linha de frente de muitas organizações. Porém, violências estruturais como machismo e racismo, afetam diretamente a vida delas. “E, ao que me parece, quanto mais jovem ela é, mais difícil é para que possa se desenvolver enquanto sujeito social”, complementa a antropóloga. 

Diferente de Teônia, Josiane Borges começou a militância na rua onde mora. No bairro Areias, o Parque Palmeirais era uma das tantas invasões da zona Sul, abandonada pelo poder público. Na época, nenhuma mulher andava de salto na rua. “Era capaz de afundar, não tinha rua decente”, relembra. As vias sem asfalto, as casas sem água e a pobreza assolando a população fez Josiane movimentar a Associação dos Moradores do Parque Palmeirais.

Na época, meados dos anos 80, ninguém impediu Josiane. A maioria das mulheres da comunidade eram mães solos que faziam malabarismos em trabalhos informais. Agora, em ano eleitoral, Josiane é uma peça que incomoda cobrando ações dos políticos. Afinal, conhecendo toda a comunidade, aos olhos dos candidatos ela é uma forte cabo eleitoral. No entanto, ela lembra de cada obra feita no bairro e não se esquece, principalmente, das promessas não . “Se é a gente que mobiliza o mundo, a gente então toma as rédeas dele”, afirma.

Josiane Borges, a esquerda, líder comunitária dos moradores do Parque Palmeirais (Foto: Vitória Pilar)

A organização popular de Teônia e Josiane também tem acontecido, nos últimos anos, nos fundos de quintais do Zundão dos Camilos, uma comunidade rural em União, a 65 km de Teresina. Lá vivem 70 famílias, a maioria chefiada por mulheres. Na década de 60, quando o povoado começava a se formar, a última palavra dentro das casas era dos homens. Mulheres ficavam em casa cuidando dos filhos e da comida. Na quebra de coco, pouco a pouco, elas iam reconhecendo não apenas um ofício, mas o direito político. 

Atualmente, cerca de 20 mulheres se reúnem mensalmente com lideranças políticas, vereadores e secretários municipais para articular melhorias na comunidade. A estrada de asfalto, ajuda de custo para feiras dos seus produtos e propostas para juventude tem sido reivindicações das mulheres – a maioria com mais de 50 anos. Elas temem, em breve, uma migração cada vez mais forte da juventude. É o caso de Maria Cleidinar Moreira, que tem duas filhas. Uma delas já foi embora para Teresina, em busca de emprego.

Em União, mulheres quebradeiras de côco chefiam a maioria das famílias (Foto: Vitória Pilar)

Cleide, como prefere ser chamada, passou boa parte da vida dentro de casa à submissão do marido e, quando solteira, do pai. Há uma década a coisa mudou: a decisão majoritária, em todos os âmbitos da casa, parte dela. Tem sido isso que ela ensina às filhas: “O exemplo parte de casa”, comenta à reportagem. “E nós somos sim muito capazes de transformar tudo o que fazemos”.

O rosto que compreende as militâncias nas camadas mais empobrecidas do país, sem sombra de dúvidas, é feminino, aponta a antropóloga Carla. “Com motivos coletivos ou individuais, elas divergem na idade, causas e posicionamentos ideológicos”, comenta. “Apesar disso, são enfáticas ao afirmar que, depois do primeiro passo que deram para ocupar seus espaços, é improvável retroceder”. É o que afirma Teônia no seu cotidiano militante: “Nos nossos sistemas, eles acham que é impossível construir algo sem um nome por trás. Fazem de tudo para nos calar”, reflete. “Mas sou incansável e tenho o couro grosso”. 

 

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