Havia algo entre a música e a multidão que fazia tudo ficar mais bonito no centro comercial de Teresina nos anos 80. Jorgina Baghuim, 56 anos, até hoje não consegue explicar as emoções que sentia nas baladas undergrounds da década de 80. Se durante o dia ela e as amigas engoliam a seco os cochichos e olhares atravessados das pessoas nas ruas, à noite, ela virava uma estrela. “Existia preconceito em todo lugar, mas à noite parecia que isso tudo sumia”, conta à reportagem. “A gente se misturava”. “Na noite, todo gato é pardo”, brinca. Transformar-se era literalmente o que Jorgina fazia na madrugada. Nas noites da capital ela era Isabellita Kennedy, a mulher inspiração.
Naquela época, no entanto, a luta pelos direitos humanos não era uma tônica dentro da folia. Muitas aconteciam, inclusive, de forma clandestina, às escondidas – a diversão não era um direito. Jorgina lembra que, por um tempo, esconder-se era estratégia de manter a segurança das próprias drag queens. Naquela época, relembra, não haveria uma cena cultural que pudesse acolhê-las. Mas Jorgina vai muito além: “Eu também acredito que se não fosse por nós, mantendo o centro vivo, não haveria a efervescência cultural que aconteceu por tantos anos”.
Enquanto havia um preconceito explícito das camadas mais elitizadas de Teresina, no final da década de 80 as drags queens alcançaram certo prestígio mesmo entre as camadas mais conservadoras. Não foi por acaso. Roberta Close, uma das primeiras mulheres trans a ganhar destaque fora do país, se tornava um ícone sexy. Na rua, Jorgina conta que era abordada por fotógrafos e repórteres para contar segredos da transformação e truques dos seus shows. “Foi um momento fora da curva, a gente começou a virar uma pauta boa na imprensa”, lembra com animação. “Aos poucos a gente percebia que íamos ser aceitas”.
O que pareciam tempos áureos com a boa fama de Close, logo veio a ruir. Com a chegada dos anos 90, veio a epidemia de Aids – à época, uma doença de tratamento e transmissão desconhecidos. A notícia dos primeiros casos não demorou a chegar no Brasil, pautada com desinformação e preconceito. “Se antes éramos fotografadas, passamos a ser agredidas”, comenta sobre os primeiros casos da doença em Teresina. “Chamavam a gente de depósito de Aids, não queriam mais ficar perto de nós”, relembra.
No Centro de Teresina, uma placa de trânsito foi misteriosamente instalada com a imagem de um cervo impedido de atravessar a rua. “A mensagem era clara: proibido andar ‘viado’”, explica Jorgina. O anúncio causou rebuliço entre a comunidade LGBTQIA+ que, à época, era reduzida à sigla GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). “Fico pensando se fosse nos dias de hoje, se teria o silêncio da sociedade que houve naquele tempo”, destaca Jorgina. “No final, só quem perdeu foi a gente, os nossos melhores anos por conta do preconceito”. Até hoje, o responsável pela placa nunca foi encontrado.
O preconceito andava lado a lado com a falta de informação. Em Teresina, as notícias eram escassas e não chegavam para todo mundo. Era preciso esperar o jornal chegar às bancas no dia seguinte aos acontecimentos, e pouquíssimas famílias tinham acesso ao rádio e à televisão. E as novidades nem sempre eram boas. “Retratavam com um olhar sensacionalista, como figuras de índole duvidosa, perigosas”, complementa Jorgina. “Isso provocou que a comunidade LGBTQIA+ fosse vista como foco de doenças”.
Para reagir, foi necessário resistir. Ao passo que políticas públicas de saúde foram levando informação e tratamento para as pessoas acometidas pela doença, pipocavam entre as comunidades organizações próprias para reverter o ódio em orgulho. Nasciam então, as primeiras Paradas LGBTQIA+ na cidade. “Era tudo muito tímido, como se não fosse para fazer tanto barulho assim, mas também para não acharem que estávamos caladas”, lembra Monique dos Santos, 53 anos, mulher trans. No começo da militância em Teresina, ela atuou em um ativismo solitário, quando havia poucas articulações e órgãos dispostos a apoiarem a causa.
A primeira parada foi produzida pela Sesapi (Secretaria Estadual de Saúde do Piauí). A repercussão foi positiva até, reconhece Monique, bem diferente das pioneiras no Centro-Sul do país. Em São Paulo, quando aconteceu o primeiro evento desse cunho, moradores de edifícios jogavam sacos com urina nos participantes. “Talvez, naquele momento, a gente não sabia bem o que estava fazendo, mas sabíamos que acontecia algo importante e dávamos um passo irreversível para afirmação de direitos”, lembra Monique.
As histórias de Monique e Jorgina fazem parte de um importante período da cena queer de Teresina, quando, a partir da década de 80, a capital vivia o auge do processo de modernização. Esse período excepcional da história teresinense para a comunidade fez parte dos últimos cinco anos de estudo da documentarista Tássia Araújo. Agora, no dia 23 de outubro, ela lança seu primeiro longa-metragem, recuperando memórias e testemunhos de pessoas LGBTQIA+ que fizeram parte da efervescência cultural da cidade. Para Tássia, o filme “Comigo Num-se-Pode” fala, sobretudo, de pessoas únicas que compartilharam das mesmas experiências no mesmo tempo e espaço. “São lugares e lembranças muito nossas e o público vai se identificar”, comenta.
Do momento em que começaram a se transformar e resistir, Jorgina e Monique têm a sensação que viveram, de fato, cenas de um filme – com momentos bons, mas também amargos. Elas presenciam, agora, uma nova geração se reinventando e conquistando direitos que outrora pareciam impossíveis. “Muita coisa mudou, mesmo que algumas não tenham sido para melhor”, ressalta Monique.
As duas mulheres, que viveram o auge de um centro efervescente, lamentam enxergar essa zona da cidade cada vez mais solitária e insegura. No entanto, não deixam de acreditar que, assim como a militância se renovou, ainda possa existir um centro teresinense com a mesma energia de quando os primeiros palcos foram montados. “A música nunca para de tocar, a gente nunca vai parar de dançar”, afirma Jorgina à reportagem. “Eu sigo aqui, acreditando no poder de cada nova geração capaz de se reinventar e resistir”.
–
Comigo Num-se-Pode
Classificação: +12
Exibição única
23 de outubro, 19h
Theatro 4 de Setembro
Ingressos aqui.
0 comentário