Ao redor de Sapé, uma pequena comunidade rural localizada entre as cidades de Currais, Bom Jesus e Baixa Grande do Ribeiro, vivem cerca de 10 famílias. Por lá, não há água encanada nem energia elétrica, tampouco saneamento básico adequado. Quem precisa de serviços básicos de saúde e educação tem que recorrer aos municípios próximos. Como Sapé, outras 20 comunidades se aglutinaram, desde a década de 90, em um perímetro de quase 60 quilômetros de extensão chamado Vale do Gurupi Preto, no extremo Sul do Piauí. As populações são pequenas, fincadas em regiões planas e altas para facilitar a caça e a moradia. Não é só isso que une as comunidades: na última década, o agronegócio abocanhou a região de forma tão evidente que agora modifica a paisagem e a vida das pessoas.
“Tudo é pasto”, conta Jacira Castro, moradora de Sapé. Ao redor do lugar onde vive, um imenso deserto verde parece apertar as localidades do Vale do Gurupi. Quando se desloca para a cidade, pela janela do carro, a vista é tomada por um imenso perímetro sem sinal de fauna, flora ou gente. Se por muito tempo acreditou-se que o avanço das grandes fazendas de monocultura de soja, milho ou algodão afetava a vida no campo, agora o impacto chega à vida urbana. Cidades como Bom Jesus, que possuem pouco menos de 35 mil habitantes, são emolduradas pelos paradoxos arquitetônicos do avanço do agro.
Na rodovia que corta a cidade, a BR-135, os caminhões ilustram o cotidiano. Eles disputam a atenção com lojas de produtos agrícolas, maquinários e um robusto comércio de manutenção do agro. O lazer também se tornou personalizado: as churrascarias despontam, em diferentes pontos da cidade, como alternativa para os moradores da zona urbana.
Por menor que sejam, as cidades não passaram despercebidas do fenômeno da segregação espacial. Nas camadas mais abastadas pelo asfaltamento, segurança e serviços, instalam-se condomínios e residências de alto padrão. Quem mora ali, obviamente, são os produtores e latifundiários acomodados na região – uma parcela significativa de pessoas que vieram do Sul e Centro-Sul do país. Enquanto isso, pessoas que migraram do campo para a cidade e até mesmo as pessoas mais pobres da zona urbana foram sendo empurradas para as regiões periféricas. “O agro tira as pessoas do campo, mas também não querem elas ocupando as melhores zonas da cidade”, destaca Jacira.
Foi a partir da década de 80, estima-se, que o agronegócio fincou-se no Piauí. À época, fazendeiros se deslocavam do Rio Grande do Sul para explorar as terras no sul do estado. Enquanto o Piauí passava por processos de urbanização e aumento da população ao norte e litoral, o baixo quantitativo populacional do outro lado do estado chamava a atenção dos latifundiários recém chegados. O terreno plano e o índice de chuvas positivo davam indícios de terras férteis para plantações de soja e milho. O cenário era bom para o maquinário, bom para as criações de gado e bom para o bolso dos fazendeiros. Sem concorrência, pouco a pouco, os terrenos iam sendo comprados a preços quase simbólicos e sendo adquiridos em uma escala progressiva.
Com a chegada dos anos 2000, veio um investimento massivo no programa Matopiba, a fronteira agrícola que compreende áreas do cerrado nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. O espaço é um forte dinamizador da economia que, antes da concentração de investimento, estava estagnado. De lá para cá, a área de exploração agrícola não parou de crescer. Entre 2000 e 2020, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o crescimento em quilômetros quadrados foi de 282,9%. Um aumento de quase 9,475 km², sendo o 9° maior do país. No mesmo período, a perda de vegetação nativa foi de 12.320 km², pouco menos de 6% do território total de vegetação natural.
Não foi somente o espaço físico que mudou. No último balanço do IBGE e Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí (Cepro), entre os 10 municípios com maior PIB (Produto Interno Bruto) do estado, Uruçuí (4°), Baixa Grande do Ribeiro (6°), Bom Jesus (7°) e Guadalupe (10°), despontavam no ranking. Não por acaso, são os três, Baixa Grande do Ribeiro, Uruçuí e Ribeiro Gonçalves, também no Sul do Piauí, os maiores produtores de soja do Brasil. Em 2021, o valor da produção de soja em Baixa Grande do Ribeiro atingiu R$ 1,89 bilhão; a de Uruçuí chegou a R$ 1,29 bilhão e a de Ribeiro Gonçalves atingiu R$ 803 milhões. Os três municípios, sozinhos, são responsáveis por 56,15% de toda a produção de soja do estado.
Por outro lado, todas são cidades pequenas, com população abaixo de 50 mil habitantes. Em 20 minutos é possível conhecer, de ponta a ponta, o começo e o final dessas cidades. São lugares com baixo ou inexistente investimento no setor cultural – com exceção dos esporádicos shows contratados pelas prefeituras -, sem grandes instituições de ensino ou profissionalização. Em cidades como Baixa Grande do Ribeiro, por exemplo, a população estimada chega a menos de 10 mil pessoas. Segundo o levantamento, somente o cultivo de soja explica o impacto no PIB da cidade.
Se, por um lado, os relatórios cravaram em números o avanço do agro no Piauí, por outro, o resultado quantitativo não olhou para os lados. Isso porque, desde a chegada da agricultura como modelo de negócio, comunidades rurais, tradicionais e indígenas foram e continuam sendo ignoradas. De acordo com a professora Valcilene Rodrigues, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão, Nagu (Núcleo de Agroecologia e Arte do Vale do Gurguéia), desde sua chegada no Piauí, o desenvolvimento, as políticas públicas e o investimento para o agronegócio foram pensados e estruturados para abarcar os interesses de poucos. “O PIB ovacionado nas pequenas cidades é reflexo de uma renda concentrada”, destaca a professora. “É a grande contradição do capitalismo: empresas e fazendas gigantes desenvolvem soja, milho e riqueza, enquanto os povos originários vivem em situação de pobreza, envolvidos em conflitos de terra e sem a mesma tecnologia para poder plantar e desenvolver suas culturas”, reforça.
Um exemplo dramático é vivido na comunidade Laranjeiras, no município de Currais – também situado no Vale do Uruçuí Preto. No início de 2021, uma ladeira que dá acesso à localidade rompeu por conta das chuvas e enchentes. O resultado foi o afloramento dos riachos afetando as nascentes: tudo virou um fio d’água. Os moradores acreditam que o lugar, cercado de fazendas, teve as águas contaminadas por agrotóxico utilizado nas lavouras de soja.
Não demorou muito para que todas as pessoas da comunidade, que tiveram que entrar na água durante a enchente, vivessem uma epidemia de alergias e contaminações diretamente na pele. A água chegou a ser coletada por institutos de pesquisa devido às reivindicações dos moradores, mas nunca obtiveram uma resposta sobre o que aconteceu com a água dos rios. Agora, ninguém se atreve a tomar banho ou fazer consumo dessa água.
Os resíduos das práticas de pulverização feita por tratores também não tem estagnado nas plantações e, agora, chegam nas comunidades. A chuva tem empurrado resquícios dos produtos químicos utilizados nas lavouras para outras nascentes de água, afetando a vida aquática e a mata ciliar, como as palmeiras de buriti fincadas nas margens dos rios. A vegetação típica do cerrado, costuma derrubar os cocos nas águas, que são colhidos pelos moradores. Do buriti costuma-se aproveitar quase tudo: o fruto vira doce ou óleo, mas também se transforma em artesanato e carvão. Desde a origem de Laranjeiras, o buriti era a principal fonte de renda dos moradores, mas, com medo do que poderia estar contaminando a água na localidade, foi o jeito evitar o consumo e manipulação do fruto de vez.
Os impactos da contaminação em águas de riachos e nas nascentes que cortam as comunidades também estão presentes em outras regiões, afetando a saúde pública e as práticas de produção de pequenos camponeses. Com o avanço do agronegócio, cresce também nas regiões mais altas do cerrado, as pragas, que têm “descido” para as regiões de baixões. Sem recursos e tecnologias para manter suas pequenas culturas, a maioria em modelo familiar, muitos camponeses têm abandonado as práticas tradicionais de agricultura.
É nesse abismo de desigualdades que nascem outras contradições do agro, explica a professora Valcilene. Basta olhar as condições de sobrevivência em que vivem a grande maioria de moradores camponeses e o número seleto de fazendeiros: moradias insalubres disputando espaços com fazendas de altíssimo poder tecnológico. Enquanto há uma grande quantidade de riqueza e aparato tecnológico dentro dos latifúndios, há uma inexistente procura por qualificar e recrutar quem já vive no campo para gerar emprego. Isso explica-se não somente pelo pouco recurso educacional disponível na cidade, mas também pelas disputas de interesses entre pensar o campo como um lugar de pessoas e pensar o campo como um lugar de lucro.
A solução acaba sendo recrutar mão de obra de outros municípios ou estados. O que não é tarefa fácil, explica Gleyciane Viana, recrutadora de talentos ouvida pela reportagem. Mesmo com os donos de fazendas dispostos a pagar salários que podem variar entre 5 a 20 mil reais por mês para cargos de gerência das fazendas e operação de máquinas, a exigência de viver nos lugares pode ser um empecilho. Os cargos demandam estar integralmente nas fazendas, situadas em cidades com pouco desenvolvimento cultural, na segurança e saúde. “Por melhor que seja a remuneração, muitas pessoas acabam desistindo ou nem se inscrevem na vaga”, destaca Gleyciane. “Eles não encontram as pessoas nas cidades, nem no estado, então acabam trazendo pessoas de mais longe ainda para ocupar essas vagas de trabalho com salários tentadores”, afirma a recrutadora. Esse é outro paradoxo do agro no Piauí citado por Valcilene: uma grande quantidade de dinheiro para manter o negócio do pasto, enquanto há pessoas ao lado morrendo de fome e sem emprego.
Apesar de todas as contradições deixadas pelo agro, uma das maiores dúvidas desse modelo de negócio é como um estado que produz tanto não é considerado rico. Ou melhor: como um estado que produz tanto tem pessoas passando fome. Por trás do desenvolvimento, os números revelam um cenário dramático: o Piauí tem o segundo maior percentual do país de famílias em insegurança alimentar grave, segundo estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), enquanto bate recordes e estimativas positivas para os próximos anos no mercado de grãos. A tendência é nacional: enquanto o Brasil desponta como líder na produção de soja, milho e carne bovina, foi ainda neste ano que o país voltou ao Mapa da Fome, com mais de 2,5% da população enfrentando a falta crônica de alimentos.
A resposta entre os economistas é unânime: a inflação tem dificultado o poder de compra entre as pessoas mais empobrecidas. Segundo a economista Patrícia Galvão, o agronegócio tem parcela significativa nesse processo. O milho e a soja, itens consumidos pelo boi durante a engorda, têm ficado mais caros nos fluxos de importação. Não somente isso, mas os medicamentos dos animais são importados de outros países e tiveram aumento do preço desde a pandemia. Esses dois fatores têm impactado diretamente no preço da venda por quilo nos açougues. E mais: questões ligadas ao clima, como ausência de chuvas e prolongamento da estiagem em regiões de pasto, têm tornado mais difícil o confinamento dos animais. Com essas dificuldades, o produtor prefere comercializar fora do país – onde é mais lucrativo e vendido em dólares. Em outras palavras, o que é produzido aqui não é feito para ficar aqui.
Enquanto o agronegócio vai ocupando uma fatia cada vez maior das engrenagens econômicas do Piauí, ele também vem passando por uma era de sofisticação – mesmo que puxando para debaixo do tapete a realidade de uma grande parcela da população, ao lado das grandes fazendas, com dificuldade para ter o básico para viver. Neste ano, em junho, aconteceu o 1º Bom Jesus Agroshow, um evento que se autodenominou como “o maior agrobusiness do Piauí”. A programação contou até com concurso de Rainha Agroshow, uma espécie de “Miss Piauí” versão campo. “O evento é muito bem embalado para mostrar o campo como um lugar de negócio, lucro e negócios”, aponta Kelci Pereira, pesquisadora no núcleo de pesquisa Nagu. “Não é um evento para os camponeses, as pessoas das comunidades rurais, mas para os grandes empresários”, finaliza.
No evento foram montados estandes de revendas de máquinas e insumos, produtos e serviços de tecnologia agrícola e outras ligadas ao segmento, em uma festa que envolveu o apoio da Prefeitura de Bom Jesus e do governo do estado do Piauí. Passados os períodos mais críticos da pandemia, a ideia é que o evento possa continuar acontecendo anualmente na cidade e envolva cada vez mais patrocínios de empresários do setor. Tudo isso para continuar dizendo, entre uma atração de música sertaneja e outra, que o agro é pop e veio para ficar – independentemente das consequências.
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