O sindicalismo vivia seu auge na década de 70. A saída do regime militar para o democrático fez com que, até mais ou menos as duas décadas seguintes, pipocassem manifestações e atos dos mais diversos segmentos trabalhistas no país. Uma delas explodiu em 1985: a greve geral da Caixa Econômica do Brasil. No dia 30 de outubro, durante 24 horas, todos os trabalhadores cessaram suas atividades completamente. Os economiários – como eram chamados à época -, reivindicavam jornada de seis horas de trabalho (antes, eram oito) e a possibilidade de ascensão para cargos de gerência. Sindicalização, àquela época, era algo impensável para os funcionários.
Quem viveu a paralisação geral da Caixa não esquece de duas coisas: primeiro, a apreensão por deixar o posto de trabalho para pressionar a entidade por direitos. Depois, a figura eminente de um rapaz franzino, de cabelos escuros e lisos sobre a testa. Com os olhos miúdos, andava ligeiro entre os corredores. Era José Wellington Dias, o presidente da Associação dos Economiários do Piauí, encabeçando a greve que parou a maior empresa pública do país.
Na memória de quem viveu o dia da paralisação, entre os escritórios da Caixa Econômica, era quase unânime a ideia de que Wellington não ficaria muito tempo lá. Foi assim que, rapidamente, o homem dava saltos cada vez mais rápidos entre os maiores cargos eletivos dentro da Associação dos Economiários da Caixa Econômica, até se transformar em sindicato. Desbancava, a cada eleição, figuras carimbadas dentro da empresa pública para as altas posições da militância. “Ele se desafiava sempre, era como uma estrela em ascensão”, lembra Ana Lúcia Veras, amiga que conviveu e trabalhou com Dias na década de 80. “Isso explica porque, antes mesmo do século virar, todo o Piauí já sabia seu nome”.
Wellington despontou, como os colegas imaginavam: o companheiro da luta política. Talvez por influência de casa: o pai e a mãe, Joaquim Antônio Neto e Teresinha de Araújo Dias, figuras influentes da política nas cidades de Oeiras e Paes Landim, ao sul do estado. Há quem julgue ter sido para driblar o destino da pobreza que lhe atravessou. Na pacata Paes Ladim, onde viveu na infância, comia pedaços de biscoito e bebia chá de folha de laranja do quintal de casa para enganar a fome. A miséria era tamanha que são poucos os amigos que não ouviram essa história da boca de Wellington.
Em 1998, Dias, ainda franzino e com o tradicional corte de cabelo partido ao meio sobre a testa, decidiu fazer carreira política em Teresina. Se lançou como vereador em uma complicada eleição – talvez a mais difícil de sua vida. Na época pré-urna eletrônica, o voto era contado em fichas impressas. O resultado chegava somente depois da madrugada. Quando ganhou, entre a euforia e a surpresa, fez uma promessa com os amigos: um dia, o menino de Paes Landim iria ser governador.
Pela Câmara dos Vereadores, no entanto, não ficou muito tempo. Dois anos depois, candidatou-se a deputado estadual – e ganhou. Subiu mais um degrau: virou deputado federal. Em 2002, a expectativa era ser senador. Foi quando encontrou Ana Lúcia, a amiga de longa data, em uma festa, e confidenciou a vontade de concorrer ao governo. Foi às vésperas da eleição, quase de surpresa, que o Partido dos Trabalhadores o lançou ao maior cargo executivo do estado. Os índices nas pesquisas eram baixíssimos, e a vantagem era toda do experiente Hugo Napoleão. Sua performance melhorava com a chegada das lideranças do PMDB, como o próprio Mão Santa – hoje, prefeito de Parnaíba – e um dos seus principais opositores políticos no estado. Ganhou, em uma disputa acirrada, rompendo o legado histórico de Napoleão, que disputava a reeleição.
Com a mesma agilidade, Dias foi conseguindo se manter no poder ao longo das últimas décadas, firmando-se como liderança política. Os traços indígenas lhe renderam o apelido de “cacique” da política local, ou ‘índio’ do Piauí. A veia articuladora, o tom manso, permitiram a governabilidade de Wellington durante quatro mandatos como chefe de estado. No hiato dos quase 16 anos de governo, garantiu a cadeira no Senado. No último mandato, entretanto, circulou o seguinte rumor: assim que acabasse a gestão e passasse o bastão, Dias iria se aposentar da vida política. O motivo tinha dois nomes: Esther e Arthur, os netos gêmeos, filhos do filho Vinícius Dias. A ideia era largar o (Palácio) Karnak para ter uma maior carga horária de avô. A nota foi publicada em colunas de política locais, mas, à época, nunca chegou a ser confirmada pelo então governador.
De fato, não foi o que aconteceu. Em março, o bambolê mudou de cintura: Wellington pediu para sair do cargo de governador e Regina Sousa (PT), sua vice, assumiu o comando. Com o resultado das eleições, ela deve entregar a gestão para o governador eleito, Rafael Fonteles (PT) – também apadrinhado por Dias. A mudança indicava um possível passo de Dias para outra candidatura ao Senado. Nove anos depois, ele retornou ao cargo de senador.
Os sinais de uma aposentadoria pareceram precoces. Desde 2020, quando eclodiu a crise sanitária causada pela Covid-19, Dias tem se lançado cada vez mais nacionalmente. Foi ele que esteve à frente do Consórcio Nordeste e foi coordenador na temática da vacina para a doença no Fórum dos Governadores do Brasil. Ali, destacava-se como importante articulador político para a emergência vacinal. As reportagens em veículos nacionais, colocavam o “índio” não somente como um porta-voz do Piauí, mas, agora, do Brasil.
Com Lula de volta ao páreo, após 580 dias preso em Curitiba, inocentado e com os direitos políticos restituídos, a narrativa petista ficou ainda mais forte. Quando o presidente eleito veio ao Piauí, em agosto, Wellington disse para um público de quase 35 mil pessoas: “A porca vai comer Bolsonaro aqui no Piauí”. A tradicional gíria nordestina para se referir a quem perde uma eleição destoou do tom manso que Dias costuma adotar. O prenúncio consolidou-se: o estado foi o que mais deu votos a Lula no segundo turno (76%).
Para Wellington, entretanto, a concorrência foi apertada. A única cadeira reservada no Senado nesta eleição foi disputada por oito candidatos. Porém, na contagem de votos, somente Dias e Joel Rodrigues (PP) protagonizaram. O petista levou com 51,29% dos votos, contra 47,59% do ex-prefeito de Floriano, contrariando quem apostava que Dias levaria com folga.
No dia a dia da campanha, quem acompanhou de perto o esforço foi a fotógrafa de Wellington, Roberta Aline – a publicitária de 34 anos está para Dias como o fotógrafo Ricardo Stuckert está para Lula. Há quatro anos mirando o ex-governador com as lentes, não passou despercebido ao olhar clínico da profissional as roupas ficando folgadas, o rosto revelando traços mais finos e certo cansaço nas feições. Detalhes que a câmera não captou, como a voz constantemente rouca e o corpo andando com menos agilidade, se faziam presentes na rotina da campanha.
Do primeiro até o último dia, em cada cidade que Dias precisou ir na busca por votos, as câmeras de Roberta acompanhavam os passos do político. “Em uma campanha como a dele, não se tem hora para almoçar, beber, descansar”, relembrou à reportagem. “Mas o que me admirava no Wellington é que, não importava o cansaço, ele tem essa coisa da serenidade com todas as pessoas: do porteiro ao presidente”, complementa. “Acho que é isso que tem feito a marca dele, quem vive com ele não esquece do jeito simples com o qual ele trata as pessoas”.
Desde quando começou a corrida eleitoral, foram poucos os momentos em que não precisou registrar os passos do candidato. Um deles foi quando, cravada a vitória de Lula como próximo presidente do país, Wellington aparecia no palco montado, em São Paulo, para o primeiro discurso do novo presidente eleito. O espaço foi reservado para as lideranças e companheiros mais íntimos de Lula, como Dias, responsável pela coordenação da campanha do presidenciável no Nordeste. Lá estava o “índio”, 37 anos depois das paralisações dos funcionários da Caixa Econômica, participando de um novo momento histórico no país.
A partir daí um novo capítulo na história do ex-governador do Piauí começou a se desenhar. O senador eleito foi indicado para acompanhar a adequação do Orçamento da União para 2023. Quem ocupa a posição é responsável por avaliar a proposta de orçamento, que detalha as receitas e despesas federais, além de sugerir adequações que contemplem o plano de governo de Lula. Dias está no centro da chamada “PEC fura-teto”. Isso porque a proposta planeja permitir que o próximo presidente tenha despesas fora do teto de gastos para bancar promessas de campanha.
No centro do programa Roda Viva, exibido na última segunda-feira (14), o assunto foi esse: a PEC da Transição, manutenção do Auxílio Brasil de R$ 600,00 e aumento real no salário mínimo. Na entrevista, Wellington definiu como “problema grave” o tempo curto para aprovar a PEC. O impacto projetado é de R$ 175 bilhões. Segundo ele, Lula pretende garantir que o governo inicie com as condições para fornecer o básico à população – o que não seria possível com a peça orçamentária encaminhada pelo presidente Jair Bolsonaro.
Questionado sobre a relação com o Centrão, importante negociação para aprovação da PEC, foi incisivo: “Renan Calheiros trouxe alternativas”, disse referindo-se à Câmara dos Senadores. “Mas é importante lembrar, o povo brasileiro ficou de fora. Isso aqui não é só um jogo de palavras, colocar os pobres no orçamento é uma posição não só do presidente, mas uma necessidade do povo brasileiro”, frisou. Ainda na entrevista, Dias tentou dar um novo nome para a proposta, se referindo ao plano como “PEC dos pobres”.
A entrevista, com alcance nacional, coloca holofotes sobre o nome de Wellington no novo governo Lula. Desde a eleição, Dias tem sido especulado para um dos ministérios. Entre a opinião popular ele é cogitado para o Ministério da Economia, Casa Civil e Desenvolvimento Regional. Porém, um outro lado da ala do partido defende que o piauiense possui um perfil articulador, que o governo federal deve precisar no Congresso Nacional, a fim de formar maioria na Câmara e no Senado. Frente a um parlamento conservador, a missão de Dias é atenuar com sutileza os ânimos no legislativo, garantindo a governabilidade do presidente eleito.
O que não tem sido, desde que entrou na política, um problema para Wellington. Ao longo das gerações, ele não somente conseguiu dançar conforme a música, mas garantiu que a melodia tocasse no seu tom. Quando ainda era estudante de Letras, na Universidade Federal do Piauí (UFPI), chegou a conviver com parte do movimento estudantil à época, mas acabou pendendo para o sindicalismo. As categorias trabalhistas e movimentos organizados pediam revolução, mas Wellington oferecia outro ponto: diálogo e parcimônia.
Quem bem lembra desse momento é Zé Carvalho, ex-militante estudantil durante o período da ditadura militar, filiado ao PCdoB (Partido Comunista do Brasil). A criação dos partidos de esquerda no Piauí se costuravam ao momento político da época. Não foi à toa que o primeiro vice-governador de Wellington, ainda em 2002, foi Osmar Júnior, também filiado ao PCdoB. A preocupação era derrubar as oligarquias familiares aglutinadas no governo do estado. “Havia uma reconstrução do país que dialogava nos estados nordestinos. Isso explica a gênese da criação dos líderes políticos de hoje, como o Welligton”, destaca Zé Carvalho. Com o tempo, naturalmente, foram surgindo as discordâncias políticas entre a própria esquerda. Nas duas últimas décadas, houve rusgas na história dos partidos, mas também foi Dias um dos principais responsáveis por amansar as diferenças internas das correntes partidárias. “A conjuntura nacional em que Wellington se instalou hoje faz sentido quando alguém para para analisar a sua trajetória política no estado”, afirma Carvalho. “Ele é esse cara que sabe comedir suas ações para gerar alternativas e amplitude às situações”
De 85 para cá, nem mesmo o penteado de Wellington parece ter sofrido mudanças drásticas. Quem o conheceu como sindicalista afirma que o político em quase nada mudou. A única marca do tempo no perfil do petista são os fios de cabelos mais esbranquiçados que insistem em despontar – e, recentemente, a perda de quase 12 quilos observadas pelas lentes de Roberta. A conciliação tem sido o perfil que o sindicalista parece ter conservado e é unânime em quem tem vivido com Wellington há quase meio século. A personalidade será bem-vinda para enfrentar a nova era do parlamento bolsonarista: órfãos de significante, mas ávidos por manter vivo o seu significado pelos próximos quatro anos. Nesse rumo, ao que parece, Esther e Arthur, os gêmeos da família Dias, ainda terão que esperar mais um pouco para terem a atenção integral do avô.
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