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Cultura do medo

Fundação cívico-militar invade Casa do Hip-Hop em Teresina; artistas apontam criminalização e Secult fala em “equívoco”

29 de novembro de 2022

Edição Luana Sena

Os estudantes que fazem parte da Casa do Hip Hop foram impedidos de frequentar o lugar no último sábado (26). Eles encontraram as portas da entidade cultural fechadas e os cadeados trocados. Há quase duas décadas, o complexo escolar, localizado no Parque Piauí, recebe jovens e crianças da periferia da zona Sul, para realização de atividades culturais. Neste ano, a casa passou por reformas no teto, paredes e toda a parte elétrica e hidráulica. A Equatorial Energia foi a empresa que financiou parte da reforma. Mesmo com as obras em andamento, o coletivo de artistas que ocupa o espaço manteve a programação de cursos e oficinas, como capoeira e judô.

Paralelamente, um trabalho voluntário identificado como Fundação Populus Rationabilis também fazia uso do espaço. Segundo o coordenador do projeto, Charles Borges, o governo do estado teria cedido parte da estrutura para a entidade. A reportagem entrou em contato com o coordenador, que não quis dar mais informações, não apresentou a documentação sobre a suposta cessão do imóvel e não soube detalhar as atividades desenvolvidas pelo projeto. Ainda em conversa com a reportagem, ele afirmou que o projeto desenvolve atividades em uma espécie de “pelotão mirim”, com objetivo de “tirar os jovens do tráfico de drogas”. 

Luna Dandara, uma das estudantes da Casa do Hip Hop, informou à reportagem que quando chegou à entidade no sábado, havia dois cachorros utilizados por Charles para fazer a segurança do espaço. Nesta segunda (28), uma placa informando que o lugar estava sob nova administração pegou os usuários do espaço de surpresa. “Não fomos notificados sobre essa suposta cessão, tampouco informaram pra gente que seríamos impedidos de usar o espaço”, relata a jovem. Dandara contou que alguns integrantes da entidade tentaram conversar com Charles, que não deu abertura. 

Desde 2017, a Fundação Populus Rationabilis conseguiu legitimidade nas suas atividades com a prefeitura de Teresina e, em 2013, com o governo do Piauí. Neste ano, segundo publicações do Diário Oficial, foram concedidos à fundação recursos financeiros e um automóvel para as atividades desenvolvidas. Em 2018, a entidade solicitou à Seduc (Secretaria de Estado da Educação) que o projeto pudesse funcionar nas instalações da Casa do Hip Hop. O pedido alegava, sem provas, como mostra o documento obtido pela reportagem, que a casa estava sendo “utilizada para festas e bebidas alcoólicas por menores de idade”. Leia aqui o documento. 

A Populus Rationabilis é responsável por coordenar um “projeto balístico não letal”. Em propaganda divulgada pela casa, eles afirmam que a  “MS.A Munição Não Letal, disponibiliza em 2022, a maior revolução em munição não letal do mundo, que poderá ser usada por todas as agências de segurança em suas unidades”. Segundo eles, trata-se de uma munição paralisante para ser usada em qualquer calibre de armas. Em entrevista à reportagem, Charles Borges reiterou o caráter cívico-militar da instituição, informado também pelo site oficial: “realizamos atividades pedagógicas, comandos coletivos, instruções de disciplina e a palavra de Deus, sendo ministrada para a vida.”

Nas redes sociais, o produtor cultural Caio das Neves alegou que ações contra a Casa costumam ser frequentes. “Em agosto de 2018, invadiram um evento realizado em parceria com o Sesc, agredindo inclusive mulheres que estavam presentes”, comentou. O artista urbano Doomer, frequentador da Casa, também se pronunciou nas redes sobre a ação do coordenador, a quem chamou de “racista bolsonarista”. “Há anos recorre a ações de criminalização a fim de expulsar essa manifestação da cultura negra que é o Hip Hop”, pontuou.

A Secult (Secretaria do Estado de Cultura), responsável pelas obras no espaço, informou que o espaço da Casa do Hip Hop estava sendo reformado desde o início do ano e que o lugar não será utilizado somente pela Fundação. Em relação à estrutura do espaço, o órgão não especificou as medidas que estão sendo tomadas. O secretário também informou que a situação será resolvida em breve pela Secretaria de Estado da Administração e Previdência (Sead). Conforme o órgão, a Sead deverá fazer a divisão do espaço entre a Fundação Populus Rationabilis e a casa do Hip Hop ainda nesta semana. 

Para Carlos Anchieta, secretário de cultura, a tomada 100% do espaço seria um “equívoco”. Em nota oficial, a Casa do Hip Hop declarou que, até o momento, estão impedidos de realizar atividades por conta da invasão da Fundação Populus. “A Casa do Hip Hop de Teresina é um espaço de produção artística, cultural e esportiva,” declaram. “A Casa do Hip Hop de Teresina é um espaço ancestral, é nosso pedaço de quilombo na cidade urbana”, finalizam. 

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