quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Expansão precária

Tecnologia ampliou ensino superior para todos os municípios, mas campi da UESPI seguem precários há quase duas décadas

05 de dezembro de 2022

Edição Luana Sena

A primeira vez que Ruth Costa pisou em Picos, Sul do Piauí, foi para fazer a matrícula na graduação de Jornalismo da cidade, na Universidade Estadual do Piauí. Em 2003, a instituição tinha pouquíssimos cursos no campus e os ofertados viviam em escassez de professores e estrutura. Ruth fez parte da segunda turma do curso, há 20 anos, e lembra até hoje que mais de uma vez os estudantes precisaram assistir aula com professores de outras áreas do conhecimento para ocupar as lacunas na grade. A estrutura também era precária no campus do bairro Junco: o prédio da universidade dividia espaço com uma escola de ensino médio. Sem laboratório, tampouco equipamentos para as disciplinas práticas, os professores chegavam a ceder suas residências para servir de estúdio à biblioteca. 

“São coisas que a gente só entende depois”, declara Ruth à reportagem. “Do lado em que havia escassez de quase tudo que se pode imaginar, havia também uma extrema força de vontade por parte do estudante, dos professores”, relembra, “A gente entendia, inconscientemente ou não, que uma universidade situada no semiárido do Piauí, sobretudo, representava as primeiras gerações de filhos de camponeses e agricultores que iriam obter um diploma”, complementa. “Não dava para perder a chance, a gente precisava resistir”. 

Ruth Costa e a segunda turma de Jornalismo da Uespi Picos, há quase vinte anos (Foto: arquivo pessoal)

A universidade em que Ruth se formou, em Picos, já não é mais a mesma. O campus do Junco agora sedia um dos polos da UAPI (Universidade Aberta do Piauí), um programa de ensino voltado para o desenvolvimento da modalidade de educação à distância. Para driblar a ausência dos campi presenciais, a UAPI surge como uma alternativa de expandir e interiorizar a oferta de cursos e programas de ensino superior no Piauí. Com a adesão da UAPI, a ideia é contrariar os dados que marcavam os índices de analfabetismo no início do século, quando 35% da população jovem e adulta não sabia ler nem escrever. Em 2022, esse índice chegou a 16% – embora não sejam considerados altos, em duas décadas, os números caíram quase 20 pontos percentuais. 

Agora, dos 224 municípios piauienses, 41 têm campi das universidades federais ou do Instituto Federal (IF). Os outros 183 municípios contam com a mediação tecnológica via satélite da UAPI. Neste ano, o programa lançou a última etapa do programa Universidade Aberta, e conseguiu tornar o Piauí a única unidade federativa a ter ensino superior em todos os municípios. Pelo programa, as aulas acontecem aos sábados, geralmente o dia todo, de dentro do estúdio da TV pública do estado, a Antares. De lá, o professor interage diretamente com os municípios do interior, onde tutores e alunos participam de forma presencial, um formato híbrido que mescla encontros presenciais e educação à distância.

Campus Pirajá (Foto Davi Fernandes)

Uma das estudantes é Elieide da Silva. Ela mora em Canavieira, a quase 500 quilômetros de Teresina. Para cursar o ensino superior, ela precisaria se deslocar quase 150 quilômetros diariamente, para chegar à faculdade mais próxima. Seria preciso abandonar o emprego na cidade, em uma perfumaria – porém, sem trabalho, não teria como se manter em outro lugar. Em dois anos, ela termina a graduação de Administração pela UAPI. Com diploma em mãos, pretende prestar concurso e ingressar no mercado de trabalho. 

Por outro lado, mesmo com os avanços tecnológicos, os campi presenciais da Universidade Estadual parecem ter parado no tempo. O campus Poeta Torquato Neto, o maior da instituição, localizado no bairro Pirajá, em Teresina, ainda guarda rachaduras de quase duas décadas. Quem vê de perto, como testemunha ocular, é Sebastião Fernandes. Ele chegou em 2002 acompanhado de uma máquina fotocopiadora para fazer trabalhos de impressão no bloco em que se concentram os cursos do Centro de Ciências da Educação, Comunicação e Artes (Cceca). De seu quiosque, ele viu reformas significativas acontecendo nos últimos 20 anos, como quando as salas foram ampliadas e receberam as primeiras centrais de ar. Por muito tempo, a climatização era feita apenas por ventiladores.  Nos meses mais quentes, as janelas e portas ficavam abertas para aplacar o calor. 

Corredores Uespi Pirajá (Foto: Davi Fernandes)

Mesmo sem nunca ter feito uma graduação Sebastião sentiu, ao longo dos anos, o impacto que a estrutura deficitária causava no desenvolvimento dos alunos. “Não sou professor, mas sei do potencial que esses alunos têm e que eles mereciam bem mais”, comenta o trabalhador. Ele já perdeu as contas de quantos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC’s) chegou a imprimir, mas lembra de todos em que participou como objeto de pesquisa e perdeu a conta de quantas páginas ele próprio apareceu nos agradecimentos. Parte dessa relação cotidiana sofreu com o distanciamento da Covid-19. Com o ponto fechado, Sebastião sentiu o impacto no bolso e na saúde mental.

Quando voltou, em abril deste ano, Sebastião sentia que a universidade não era mais a mesma. A estrutura parecia ainda pior. Nos quase dois anos em que o prédio ficou sem receber estudantes, parece não ter tido nenhum reparo. As pracinhas de cada centro dão a impressão de ter menos bancos – os que restaram, estão deteriorados e quebrados. Não há portas na maioria dos banheiros, que também apresentam sanitários quebrados. A biblioteca física que, mesmo antes da pandemia, funcionava em espaço improvisado em um dos auditórios, segue na mesma situação. No centro do campus, uma construção inacabada a céu aberto, revela que a obra nunca foi entregue. A reportagem entrou em contato com a assessoria da Uespi para ter mais detalhes da obra, mas não obteve retorno. 

Biblioteca improvisada no principal campus da Uespi em Teresina (Foto: Davi Fernandes)

No último mês, a Uespi divulgou o Calendário Acadêmico que trouxe uma novidade: no semestre 2023.1, a universidade não ofertará vagas no Sisu. De acordo com a instituição, as aulas deste período (2022.1) devem ir até fevereiro de 2023. Logo depois, 2022.2 seguem de abril até agosto do ano que vem. A Uespi confirmou a informação e citou que só receberá novos alunos em outubro de 2023. A universidade explicou que a decisão se deve à adequação do calendário universitário ao civil para o ano que vem, mas garantiu que a medida não afetará as atividades acadêmicas e que somente haverá uma alteração na nomenclatura do semestre.

Entre estudantes ouvidos pela reportagem, entretanto, o receio é que essa medida dificulte a entrada de futuros alunos no próximo ano. Isso porque, sem abertura de um dos períodos, a universidade teria apenas uma oportunidade de ingresso através do Sisu – Sistema de Seleção Unificada, quando normalmente acontecem dois a cada ano letivo. Além disso, há também o receio que cursos já tradicionalmente ofertados uma única vez, no primeiro semestre, não sejam sequer oferecidos na seleção de 2022.2. No último dia 30 de novembro, o Ministério Público solicitou a revogação da resolução para o cancelamento do período de 2023.1 e pediu que a UESPI apresentasse uma alternativa de ingresso de 1,5 mil novos alunos na instituição para o mesmo período. 

Com menos gente na instituição, vai ser o jeito Sebastião aposentar a fotocopiadora. 

Ponto de xérox do Sebastião (Foto: Davi Fernandes)

Um olhar mais sensível sobre a Uespi pode perceber que as paredes de uma universidade são também espaço de construção diária de uma resistência: a luta por um ensino superior público de qualidade no Piauí. Iaquelly Sousa, de 21 anos, percebeu isso ainda nos primeiros períodos de curso, quando ela e os colegas precisaram fazer aulas na rua, ocupações e manifestações em defesa da instituição. A jovem tem quase a mesma idade da existência de seu curso e, hoje, é uma das estudantes para quem Ruth dá aulas no curso de jornalismo em Picos. São duas décadas que separam docente e discente e, apesar de significativos avanços, a Uespi ainda parece engatinhar. 

No começo dos anos 2000, Ruth viveu uma época em que a universidade precisava firmar ensino, enquanto Iaquelly faz parte de uma geração de jovens estudantes pesquisadores e extensionistas da instituição. Foi também a geração de Iaquelly que viveu o período híbrido por conta da pandemia: viveu metade do curso na experiência remota. Mesmo assim, ainda hoje, não há laboratórios com computadores e equipamentos. 

Sala de aula no campus de Picos hoje (Foto: Sávio Magalhães)

Tudo o que há são promessas que, um dia, as estruturas da Uespi sejam tão completas que os estudantes não precisarão fazer malabarismos a fim de fechar a formação com qualidade. Talvez Iaquelly não fique para ver as mudanças – em breve deve se formar. Enquanto esse dia não chega, a solução que professora e aluna parecem ter encontrado é persistir na ideia revolucionária que a educação não pode parar, não pode ruir, não pode acabar. “Educação é, e sempre será, uma urgência para ontem”, finaliza Iaquelly. 

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Categorias: Especial

1 comentário

lucineide barros mdeiros · 9 de dezembro de 2022 às 18:33

Vi na matéria um olhar sensível para uma dimensão que a propaganda oficial não mostra; a uespi são as iniciativas para tentar avançar, mas são também os diversos problemas que impedem esse avanço, como a escassez de financiamento, a falta de prioridade no contexto das ações estratégicas do estado, a arquitetura deteriorada da maior parte das unidades, a assistência estudantil precária, o esvaziamento das turmas e dos trânsitos acadêmicos e a falta de um processo de construção coletiva que convide a todos/es para se envolveram na busca de saídas.

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