Há quase uma década, Polyena Santos tomou a decisão de se tornar técnica em enfermagem. Os anos de formação foram difíceis, mas ela acreditava que faziam parte da jornada de empecilhos comuns a sua missão: salvar vidas. Quando a pandemia da Covid-19 chegou, sua rotina de trabalho mais que duplicou – chegando a trabalhar 36 horas seguidas de plantão. Dividia-se em dois hospitais: Hospital de Urgência de Teresina (HUT) e Unidade de Pronto Atendimento UPA) do Promorar.
Polyena enfrentou o medo, o cansaço e a falta de materiais e leitos para atender a demanda de doentes, em um dos momentos mais críticos da pandemia. Perdeu pessoas próximas e viu pacientes morrendo sem poder despedir-se da família. A rotina excessiva de trabalho e a sobrecarga mental acabaram lhe gerando problemas emocionais. Hoje, prestes a completarmos dois anos de enfrentamento a maior crise sanitária da atualidade, a profissional de saúde escuta com tristeza o prefeito de Parnaíba, Mão Santa, chamar a categoria de “moleques” e “vagabundos”.
Do seu gabinete, com um terço no pescoço e a bandeira do Brasil hasteada ao fundo da sala, o político esbraveja ameaçando cortar o ponto dos profissionais que aderiram a um movimento grevista. A manifestação iniciou no dia 10 de novembro por conta do corte de gratificação que a categoria estava recebendo pelo combate à Covid-19. No entanto, por decisão do Tribunal de Justiça do Piauí, a greve foi notificada como ilegal.
Em nota, a Prefeitura de Parnaíba, através da Superintendência Municipal de Comunicação de Parnaíba, tentou se consertar. Na mensagem, afirma que a frase foi feita “exclusivamente a servidores que não cumprem seus expedientes como deveriam”.
O Conselho Regional de Enfermagem do Piauí (Coren-PI) repudiou as declarações do prefeito sobre os profissionais da enfermagem. Para o órgão, a fala agressiva representa a desvalorização e o desrespeito com a categoria em um dos momentos mais críticos vividos pela saúde.
Outra demanda solicitada pelos profissionais de enfermagem é a aprovação do Projeto de Lei 2.564, de 2020. O PL institui o piso salarial nacional de R$ 4.750 mensais para enfermeiros. Também estabelece carga horária de 30 horas semanais para a categoria. Aprovado pelo Senado na última quarta-feira (24), a proposta agora segue para análise da Câmara dos Deputados.
O Projeto de Lei também define pisos salariais para técnicos de enfermagem (R$ 3.325), auxiliares de enfermagem (R$ 2.375) e parteiras (R$ 2.375). Os valores para esses profissionais são calculados em cima do piso para enfermeiros: 70%, 50% e 50% dos R$ 4.750 previstos no projeto, respectivamente.
A beira do colapso
Janaína Mendes sentiu na pele a exaustão e esgotamento físico dentro dos hospitais nas alas destinadas aos pacientes com Covid-19 do Hospital Estadual Dirceu Arcoverde (Heda), em Parnaíba. A dor e o cansaço não eram somente físicos, mas também mental. “Não sou moleca e nem vagabunda”, diz durante a entrevista. “Sou mais uma cidadã que viveu de perto a precarização de ser profissional da saúde no Piauí”, repudiou. “Até ontem éramos heróis”.
A profissional faz parte do perfil de amostragem que mais apresentou síndrome de Burnout (um distúrbio psíquico caracterizado pelo estado de tensão emocional e estresse crônico provocado pelas condições de trabalho) no Piauí este ano: mulher, técnica de enfermagem, com mais de um vínculo empregatício e com jornada de trabalho extensa.
O estudo “Síndrome de Burnout em profissionais de enfermagem de um hospital no Piauí”, organizado por estudantes e pesquisadores da UFPI, abordou 67 profissionais de enfermagem – 17 enfermeiros, 40 técnicos e 11 auxiliares – para investigar como a condição afetou os profissionais durante a pandemia no estado piauiense.
No estudo, os pesquisadores explicam que a doença apresenta três dimensões: esgotamento profissional, com desgaste e perda de energia para as atividades laborais; despersonalização, quando há perda da capacidade relacional e dificuldade de cumprimento de metas; e diminuição do desempenho profissional – há declínio da autoestima e autoconfiança do trabalhador. De acordo com a International Stress Management Association no Brasil (ISMA-BR), em 2016, o Brasil ocupou a segunda posição no ranking mundial. Os profissionais de saúde ocuparam o 3º lugar entre os mais afetados.
No contexto do trabalho hospitalar é possível perceber a síndrome como desgaste na relação dos próprios profissionais. Os estresses vivenciados entre equipes, por exemplo, também são reconhecidos como causadores de adoecimento ocupacional por Burnout. Com a chegada de um vírus desconhecido, cujos efeitos devastadores ainda observamos em hospitais por todo o mundo, o desgaste das equipes de saúde foi evidenciado.
De acordo com as pesquisadoras que assinam o estudo, essas condições são predominantes para identificar sintomas de Burnout entre os participantes, uma vez que, a maioria dos profissionais de enfermagem apresentam baixo desgaste emocional (59,7%), baixa despersonalização (58,2%) e baixo rendimento profissional (64,2%).
Os números são preocupantes, alertam. Mas há caminhos possíveis para reverter esse quadro: falar sobre a condição de forma aberta, por exemplo, sem romantizações sobre a profissão – ou evitar críticas desrespeitosas, como a fala do prefeito de Parnaíba – pode ser o primeiro passo. Isso porque, questões como a definição do piso salarial adequado à carga horária e a falta de segurança no local de trabalho são fatores cruciais que implicam no diagnóstico de adoecimento dos trabalhadores de enfermagem. “Não queremos ser heróis”, frisa Janaína. “Queremos respeito”.
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