No começo dos anos dois mil, uma garotinha estreita de sorriso largo atravessava a zona Norte de ônibus para ir às aulas de balé, no centro de Teresina. Pela janela, a pequena bailarina observava o movimento daquela parte do mundo que conhecia como a palma da mão. Hoje, 20 anos depois, o seu universo está prestes a se expandir: Daline Ribeiro parte para dançar fora do país, rumo à França. Milhares de quilômetros separam seu destino da Santa Maria da Codipi, bairro onde nasceu.
Filha do meio de um bombeiro e uma confeiteira maranhense, Daline foi matriculada na Escola Estadual de Dança aos cinco anos de idade. “Era aquele sonho de mãe, de ter uma filha bailarina”, lembra em videochamada. Criança, não via ainda a atividade extraescolar como uma possibilidade de profissão.
A vivência na universidade foi crucial para o desenho de sua trajetória. Foi uma vaga na equipe de Comunicação da União Nacional dos Estudantes, em 2020, que levou a jovem, formada em Jornalismo, a São Paulo. A experiência, julga, foi fundamental para expandir fronteiras. Escrevia releases, era social media, atendeu clientes de marketing político até dar uma guinada e decidir “se movimentar artisticamente”. “Em outubro do ano passado apontei real a bússola dos desejos”, relembra. Deu tchau para a comunicação e mirou nos festivais de dança pelo país.
Dois anos depois da chegada na cidade cinza, uma chamada para a Universidade Antropófaga, do Teatro Oficina, abre-se como uma janela dos sonhos. Com sede no Bixiga, a companhia de teatro liderada por José Celso Martinez é uma das maiores referências em performance e teatro contemporâneo do Brasil. “Chama-se teatro de encruzilhada, porque fica ali entre o teatro e a dança”, explica a artista, que viveu a residência cujo resultado foi a criação do espetáculo “Mutação de apoteose”, dirigido por Camila Mota.
No meio da rotina de sete horas de ensaio, Daline ficou sabendo da audição para a companhia de dança Lia Rodrigues, premiada coreógrafa por trás do festival Panorama, há 30 anos, um dos mais importantes do país. Com o Rio de Janeiro ao seu alcance, Daline não pensou duas vezes e partiu. “Com a mochilinha que eu fui fazer o teste, fiquei mais de 15 dias e já comecei a trabalhar”, conta quase que sem acreditar.
A companhia acabara de voltar de uma temporada em Paris, onde estreou “Encantado”, espetáculo com referências da cultura africana e indígena criado durante a pandemia, em 2021. “É um espetáculo sucesso de crítica”, diz Daline que, junto ao grupo de 11 bailarinos, embarca agora em sua primeira viagem internacional rumo a uma segunda temporada na França. “É tudo completamente fora do meu imaginário”, admira-se.
Dança em cadeia
O sucesso apoteótico da dançarina, aos 24 anos, não espanta quem a viu chegar menininha nas aulas de balé. “Sempre foi uma aluna dedicada e de uma presença artística de encher os olhos”, diz Datan Izaká, diretor da Escola Estadual de Dança Lenir Argento. O local onde Daline estudou existe desde 1985 e é uma das maiores escolas do país, formando anualmente mais alunos que a escola do Bolshoi, para se ter uma ideia. São mais de mil alunos, formando em média 30 bailarinos e bailarinas por ano.
Mesmo com o predomínio do balé clássico, Daline foi influenciada por outros movimentos e grupos de dança da cidade. O próprio Izaká, de quem foi aluna, também dirige o Redemoinho de Dança, uma plataforma de criação autônoma das artes do corpo, onde Daline fez residência de criação por dois anos. À frente da escola estadual, ele trouxe outras modalidades para os jovens dançarinos. “Todos os professores artistas que fazem a dança em Teresina acontecer são minhas referências máximas”, disse em post recente nas suas redes sociais. “Comigo carrego tudo o que aprendi com eles”.
No bolo dos agradecimentos está também Janaína Lobo, coordenadora artística do Balé da Cidade e criadora, ao lado de Izaká e Jacob Alves, do Junta Festival de dança contemporânea. Foi numa das oito edições do Junta, aliás, que Daline viu Lia Rodrigues pela primeira vez, com o espetáculo Pindorama.
“É muito gratificante ver uma aluna se tornar profissional, colega de profissão, ganhar o mundo”, diz Janaína, para quem a trajetória da jovem confirma a importância da existência dos contextos de formação da cidade. “Ver uma artista piauiense, de origem periférica, fazer parte de uma companhia de dança que é referência, que a gente estuda, é de uma alegria e orgulho gostosos de sentir”, comentou.
Daline vai além. Ela acredita que já faz parte de uma terceira geração cuja origem remonta ao trabalho iniciado pelo bailarino e coreógrafo Marcelo Evelin, em 2006, no Núcleo de Criação do Dirceu. Na periferia da capital piauiense, sua atuação foi determinante para o desenvolvimento das artes cênicas contemporâneas. Do coletivo surgiram novos modos de produção em dança e o trabalho foi uma incubadora de novos artistas, sendo um divisor de águas na produção de dança na cidade. “O trabalho de artistas independentes também é muito importante”, cita Daline. “Onde eu chego e digo que sou do Piauí, o trabalho de Evelin é citado”.
Como o coreógrafo, ela parte para incrustar seu nome na história da dança, em Paris. Daline ri com os olhos e tem um ar angelical que, no entanto, não disfarça sua determinação. “Ainda tem uma criança dentro de mim, pulando e querendo as coisas com empolgação”, explica. Sua bússola dos desejos, acredita, apontará de volta, um dia, quem sabe, para o Piauí. “Quero muito retribuir tudo o que eu recebi desse estado”.
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