Diva e Silvana saem apressadas de uma das lojas da Rua Félix Pacheco, no Centro de Teresina. Abarrotadas de compras nas mãos, os passos rápidos e a conversa alta faz contraste com as ruas quase vazias no cenário urbano na capital. Quase não dá para acompanhar as mulheres – elas tem pressa para voltar para casa. “Corre, menina, se não a gente vai ser assaltada bem aqui”, fala Diva à Silvana. A reportagem do oestadodopiaui.com tenta acompanhar a correria das amigas – bastante irritadas, reclamam sobre o centro mais parecer um deserto do que o lugar que antes pulsava a economia da cidade.
O esvaziamento nessa região ficou latente após a pandemia da Covid-19, quando os principais personagens desse cotidiano, os comerciantes, tiveram que abaixar as portas de seus negócios para tentar driblar a disseminação da Covid-19. Mas, para o homem que se identifica como “Mr. M”, dono de um pequeno depósito de bebidas no Calçadão Popular, localizado no cruzamento das ruas Paissandu e Firmino Pires, esse vazio vai além da consequência do período pandêmico. “As pessoas desaprenderam o caminho do centro”, analisa o permissionário.
Criado em 2009, o Calçadão Popular tinha disponibilidade para quase 552 boxes. A sede já havia sido entregue com problemas estruturais pela prefeitura de Teresina – havia falta de água, instalações elétricas defeituosas e falta de segurança no espaço. Após o primeiro ano de inauguração, menos de 100 permissionários ficaram no local. Quando o prédio foi criado, a ideia era tirar os camelôs do centro das beiras das calçadas e colocá-los em uma unidade fixa.
Um deles é o próprio Mr. M, que resiste no local desde o primeiro dia. Cotidianamente, ele tem presenciado a falta de pessoas passando pelo Calçadão. Assim como ele, os poucos que ainda estão no prédio fazem parte do comércio tradicional: sem aplicativos de transferência bancária instantânea, como o PIX, ou máquinas de cartões, a cédula ainda é a única moeda de troca dos pequenos negócios. Se o dinheiro de papel já tem se tornado cada vez menos usual, no bolso dos permissionários, ele vem diminuindo a cada dia.
O vendedor de bebidas não se mantém otimista quanto aos próximos dias. O desinteresse nesse espaço da cidade tem aumentado à medida que surgem novos centros comerciais em regiões distintas da cidade. A teoria de Mr. M vai de encontro a do arquiteto e professor de planejamento urbano, Flávio Villaça. Para ele, desde a década de 90 as cidades têm caminhado para serem cada vez mais policêntricas. “Se você somar isso ao fato da cidade não ter ônibus, nem segurança, quem que sai hoje em dia da sua casa na zona Norte para comprar alguma coisa no Centro?”, questiona o permissionário. “A conta não fecha, né?”
Isabel Barcelar, de 69 anos, é também uma das permissionárias mais antigas do Calçadão. Ela sai da cidade maranhense vizinha, Timon, diariamente para vender confecção no prédio. Sua mercadoria é mínima, obtida em promoções de lojas varejistas para arriscar em vendas no seu box. A única vez que ficou ausente foi durante a pandemia – por ser do grupo de risco, demorou quase um ano para voltar em segurança. Ela explica que, com o dinheiro que recebe da pensão do marido, aliado ao Auxílio Brasil que a filha e os três netos recebem, a família consegue se manter. Se fosse pelo dinheiro oriundo das vendas, a situação seria mais difícil.
Quando chegou ao Calçadão, em 2013, um dia bom de vendas rendia apuração de R$ 200 – suficiente para pagar uma conta e levar comida para casa. Hoje, a duras penas, ela angaria algo em torno de R$ 50 por dia. “Se eu vendo uma coisinha, eu já vou embora”, admite. “Sei que não vendo mais que isso”.
A situação de Isabel não é tão tranquila quanto a da vizinha do box à frente. Jesuína Silva, 73 anos, vende bombons em um carrinho enferrujado. Para voltar ao bairro Promorar, onde mora, na zona Sul de Teresina, ela precisa apurar pelo menos cinco reais – suficiente para pagar um ligeirinho, uma espécie de transporte alternativo clandestino. Quando não consegue, pede emprestado para os colegas no Calçadão, muitas vezes, à própria Isabel. “A gente vai se ajudando, porque venda mesmo, não tem”, explica. “Se não tem gente na rua, não tem no Calçadão”, complementa.
Aluga-se
Entre a falta de clientes, também destaca-se a ausência de lojas. A variedade de comércios e pontos de vendas vem sumindo aos poucos. As fachadas e letreiros vão dando lugar a placas de “aluga-se” e “vende-se”, que pintam o cenário solitário das ruas. O flanelinha e o vendedor de água de coco, Marcos Sena e João de Melo, conversam entre si em frente ao Palácio do Comércio, na Rua Senador Teodoro Pacheco, e chegam a uma conclusão: tudo começou a piorar quando o centro virou um grande negócio para estacionamentos rotativos. Apenas na rua onde se encontram, contamos quatro pontos destes.
Na teoria, a disponibilidade de estacionamentos promoveria o estímulo ao comércio local, dando mais acesso às vias públicas. No entanto, essa demanda paradoxalmente também pode prejudicar alguns negócios na região – as vagas costumam ser ocupadas por executivos e funcionários de órgãos públicos, uma vez que a conta é alta e inviável para vendedores e ambulantes – estes, em grande parte, usuários do transporte público.
A propósito, Teresina está há dois anos sem transporte público regular – oestadodopiauí.com explica melhor essa história em outras reportagens. Esta semana, o Sindicato dos Lojistas (Sindlojas) constatou que, durante esse período, houve uma queda de 40% nas vendas no comércio central. Sem ônibus para se deslocar, muitos consumidores acabam deixando de ir às compras.
Quem também sentiu o peso da falta de gente circulando no centro por conta da ausência de ônibus foi o vendedor de guaraná da Amazônia, Rafael Carvalho. Em frente à Praça João Luís Ferreira, na rua Coelho Rodrigues, as paradas do transporte público se tornaram abrigos para as pessoas em situação de rua.
Antes da pandemia da Covid-19, a clientela fiel era parte dos estudantes das escolas situadas no Centro. Sem eles, parte das vendas caíram mais de 50%. A banca montada por Rafael fica em frente à parada de ônibus da Rua Sete de Setembro – uma das principais rotas que leva a quase todas as zonas da cidade. A lógica é simples: sem ônibus, sem cliente. Há mais de uma década no mesmo ponto, Rafael não tem planos de sair. Nem no período mais crítico da pandemia, quando não podia ir ao local, continuou pagando aluguel e esperando tudo melhorar. O ponto ainda é sua principal fonte de renda. “Desacreditar eu não vou”, promete. “Enquanto tiver gente, tô por aqui”.
Livreiros drive-thru
A reportagem seguiu da Praça João Luís Ferreira até a Praça do Fripisa. O relógio marcava 11h40, um horário que, costumeiramente, as ruas estariam repletas de estudantes saindo das escolas e trabalhadores em busca de almoço. A Rua Coelho de Rodrigues, naquela quarta-feira, no entanto, tinha ar de final de semana.
Nos primeiros meses do ano, a Praça do Fripisa é dividida pela metade: as paradas de ônibus e a tradicional feira de livros usados. O comércio livre, há mais de 20 anos, tem sido a fonte de renda de centenas de livreiros, contabilizando mais de 500 famílias. Março é quase o final da temporada desses feirantes mas, dos últimos cinco anos para cá, os vendedores costumam se despedir já em janeiro. Núbia Ferreira é uma das poucas vendedoras que está lá nesta época, em meio a um corredor de barracas vazias.
Enquanto conversa, embala um livro cuja capa estampa o título: “Moça bonita, do laço de fita”. Dali há alguns minutos, uma cliente que havia marcado com ela pelo WhatsApp, passaria para buscar a encomenda. Quase todas as vendas neste ano foram assim: o cliente pede pelo telefone, ela embala e ele busca num improvisado drive-thru de livros. “A gente tem feito vendas digitais, cria um site, ou tudo pelas redes sociais mesmo”, declara a vendedora. “E olha, acho que daqui pra frente, tudo vai ser assim”, faz previsões. “A pandemia veio para afastar a gente do povo”.
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