A quilômetros de distância é possível ouvir o som das turbinas e motores de aviões cortando o céu na região da Serra das Mangabeiras. Quando o barulho insistente começa, o coração de Claudia Santos aperta. No território composto por 24 cidades no Cerrado do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia (também conhecido como Matopiba), não há aeroporto ou qualquer espaço destinado a operações de helicópteros. As aeronaves às quais Claudia se refere pertencem aos gigantes territórios da monocultura, utilizadas para despejar agrotóxicos nas fazendas que avançam cada vez mais na região do Cerrado.
“Derrubaram a vegetação para botar fazenda, criar boi e soja”, conta à reportagem. “Estão matando o Cerrado, e muito pior, estão envenenando tudo ao redor com esses aviões de veneno”, destaca a indígena da etnia Gamela. Uma aeronave desse porte, segundo as empresas que fornecem o equipamento, pode levar até 1.050 litros de produtos químicos e voar até 180 km/h.
A destruição citada pela indígena é confirmada pelo MapBiomas: nos últimos cinco anos, 76% da fronteira agrícola avançou na vegetação nativa do Cerrado. A razão não é diferente das suspeitas de Claudia: o agronegócio. A expansão das plantações de soja, atualmente, ocupa cerca de 38,5 milhões de hectares do território brasileiro. Sozinhas, as fazendas representam 4,5% do território brasileiro. O avanço desenfreado das fazendas de monocultura indicam a devastação crescente no Cerrado. Especialmente em 2022, na região do Matopiba, o desmatamento do bioma cresceu quase 20% em menos de um ano.
Entre janeiro e dezembro de 2021 foram devastados 8.155km² de Cerrado. O número é seis vezes maior que o território de Teresina, capital do Piauí. Considerando apenas o último mês de 2021, a devastação quase dobrou: em menos de trinta dias, saiu de 444 km² para 839 km². A situação é ainda mais dramática se levar em conta que o mês de dezembro é considerado de chuvas na região, esperado por pequenos agricultores e comunidades tradicionais para a época de plantio. Os dados fazem parte de um levantamento do SAD Cerrado (Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado). No ano passado, em 2022, o índice ficou em 6.912 km².
O Cerrado é o segundo maior bioma do país. Sozinho, ele representa um quarto do território brasileiro. 30% dele está nos territórios do Matopiba, ao passo que 60% é alvo de desmatamento. A tendência preocupa ambientalistas da Rede Ambiental do Piauí (Reapi), que temem que o destino do Cerrado no Nordeste seja o mesmo do bioma no Sul do país: consumido por fazendas de soja e pastos de boi, 46% da sua vegetação nativa já foi perdida. Agora, só restam cerca de 20% intocado. Uma tese publicada pelo Nature Ecology and Evoluty, Instituto Internacional para a Sustentabilidade, indica previsões não muito boas: até 2050, se continuar neste ritmo, o bioma pode desaparecer.
Sem Cerrado, sem terra, sem água
Nas rodovias que cortam os municípios de Currais, Lagoinha e Bom Jesus, no Sudoeste do Piauí, as fazendas tomam conta da vista de quem passa nas estradas. Uma visão bem diferente de quatro décadas atrás, quando Claudia era criança. Com o desmatamento da vegetação, fatores climáticos e hídricos têm afetado a vida das comunidades ao redor. Espremidas pelos territórios de monocultura, as altas temperaturas e a contaminação dos rios têm afetado o cotidiano dos moradores.
”As chuvas estão cada vez mais escassas e, sem elas, não dá para plantar”, explica a indígena. “Há lugares onde antes eram trechos de rios e não tem mais nada”, conta. “Dá para atravessar à pé”, detalha. “Nos meses mais quentes do ano, aqui parece ter uma sensação de 50 graus”. Em setembro de 2022, oito cidades piauienses entraram no ranking das cidades com temperaturas mais elevadas do Brasil. Todas situadas no Sul e Sudoeste no estado onde, paralelamente, estão as maiores concentrações de pasto.
A devastação no Cerrado traz um problema ainda mais alarmante: diante da crise hídrica que o país atravessa, impondo aumento nas tarifas de energia elétrica e inflação nos preços dos alimentos, o desmatamento provoca menos quantidade de água nas bacias hidrográficas. Ao todo, oito bacias brasileiras são alimentadas por nascentes localizadas no bioma e, por isso, o Cerrado é considerado a “caixa d’água” do território brasileiro. Com tantas nascentes localizadas no bioma, quando chapadas são transformadas em plantações de soja e milho, o lugar se assemelha a um deserto. Sem as nascentes, a água não chega às bacias, provocando cada vez mais dificuldade para abastecer a população.
Além do sumiço ou mudanças de rotas no rios, a contaminação do solo preocupa cada vez mais as comunidades. As fazendas se concentram nas áreas mais altas do solo e, quando chove, a água carrega para as nascentes os agrotóxicos utilizados na plantação. “Se o Cerrado acabar, a água também acaba”, alerta Claudia.
Com as águas contaminadas, a saúde dos rios tem afetado a qualidade de vida das pessoas. Nos últimos anos, cresceu o número de doenças, antes desconhecidas pela população tradicional. “Não se ouvia falar de câncer, agora é um mal entre nós”, destaca Maria Natividade Ferreira. Ela é moradora da comunidade Laranjeira, no município de Currais. Assim como Claudia, eles se consideram indígenas da etnia Gamela. Natividade conta que em 2021, no mês de janeiro, uma ladeira foi rompida com a força da chuva. A enchente dos rios se misturou aos outros afloramentos dos riachos que atravessam as três grandes fazendas no entorno da comunidade, chegando até as nascentes. Tudo virou um único fio de água, explica Natividade.
Não demorou muito tempo, a comunidade começou a adoecer: alergias na pele, dores de barrigas, tonturas e dores de cabeça. A população solicitou à prefeitura de Currais estudos que pudessem esclarecer o que houve na água. Um grupo de pesquisadores chegou a fazer coletas na região, mas nunca retornaram. Tomar banho de rio ou fazer consumo da água não é mais uma opção para os moradores. “É uma destruição da natureza, é a destruição do nosso povo”, complementa Natividade.
A reportagem não conseguiu contato com a assessoria de comunicação da prefeitura de Currais. O espaço segue aberto para futuros esclarecimentos.
Em 2019, uma campanha nacional em defesa do Cerrado mobilizou 56 organizações para peticionar o Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado (TPP). Na ação, a campanha apontou que o estado Brasileiro é responsável pelos crimes de ecocídio contra o bioma e genocídio das comunidades que vivem no Cerrado, entre elas casos nas cidade de Baixa Grande do Ribeiro, Gilbués, Santa Filomena e Uruçuí. Somente em 2021, quase 15 casos de violências contra povos tradicionais, em diferentes regiões do Matopiba, foram apresentados ao TPP.
“Se nada for feito para frear a devastação do Cerrado vai haver um profundo e irreversível ecocídio em curso, com a perda ou extinção do bioma nos próximos anos”, aponta Tânia Martins, coordenadora da Rede Ambiental do Piauí (Reapi). “E junto com ele, a base material da reprodução social dos povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais”.
Ideias para adiar o fim do Cerrado
Flávio Crespo quase saiu aos pontapés de um evento científico na UFPI (Universidade Federal do Piauí), de Bom Jesus, oferecido pelas turmas do curso de Agronomia da instituição. A cidade é o berço do agronegócio no Piauí e, hoje, representa o 7° maior PIB (Produto Interno Bruto) do estado. Na última década, o agronegócio abocanhou a região de forma tão evidente que agora modifica a paisagem e a vida das pessoas na região. Economia, cultura e ensino são modelados – e personalizados – pelos impactos do agronegócio.
Na ocasião, o coordenador do Núcleo dos Estudos em Agroecologia e Produção Orgânica (NEA CAJUI), ligado à Universidade Estadual do Piauí (Uespi), havia sido convidado para discursar sobre o que tem pesquisado nas últimas duas décadas: agroecologia, uma ciência que estuda processos ecológicos e sustentáveis aplicados aos sistemas de produção agrícola.
Ao chegar no lugar, se recusou a subir em uma poltrona de couro branco, similar à pele de gado, e aproveitou o momento para exibir quase 30 produtos de uma feira popular de camponeses da região para os estudantes, professores e fazendeiros presentes. A atitude não agradou em nada o público presente.
“A intenção era mostrar que o agronegócio não produz comida, não alimenta ninguém”, afirma o professor. “Tentam descer goela abaixo a ideia de que o agronegócio é a válvula motora do mundo, mas isso não é verdade”, comenta à reportagem. “Tudo o que o agro produz são mercadorias e commodities. Por isso o mercado e os grandes empresários ficam nervosos quando falam de direitos para os mais pobres”, critica o pesquisador.
De acordo com o professor, a agroecologia não apresenta soluções, mas inspirações baseadas no que já existe, como a agricultura familiar, responsável por 80% de toda a comida do planeta, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). “O primeiro passo é reduzir porque não dá para frear de forma abrupta esse sistema”, explica o professor. “O segundo degrau é substituir por insumos orgânicos e depois manejar a vegetação”. O último passo seria redesenhar o agrossistema: uma conscientização pública para entender que produtos são feitos dentro de uma cadeia orgânica, e como a sociedade ganha com isso. “Uma coisa que o agro não é, é pop nem é tudo. É preciso mudar a campanha”, finaliza, por telefone.
Crespo foi um dos palestrantes do Seminário “Cerrado, te queremos vivo”, nos dias 20 e 21 de janeiro, realizado em conjunto pela Reapi, a plataforma Ocorre Diário e o Fórum Carajás, do Maranhão. Suas ideias se somaram às de outros ambientalistas e comunidades, que discutiram soluções e cobraram ações do poder público para frear a devastação do Cerrado – ou pelo menos, adiar o seu fim. De acordo com a Associação dos Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais da Bahia (AATR), o bioma perdeu mais vegetação nativa nos últimos 20 anos que nos 500 anos anteriores.
O evento contou com a presença de autoridades dos órgãos de controle e fiscalização das leis ambientais e de direitos humanos. A atuação do poder estadual, para as entidades, é essencial para garantir a permanência e recuperação do bioma. “Nos últimos 4 anos a boiada passou com força sobre nossos territórios e, agora, esperamos que as promessas de desmatamento zero possam de fato se cumprir”, disse o jornalista e organizador do evento, Luan Matheus. “O Piauí precisa de um compromisso político do governador Rafael Fontelles”, afirmou.
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Procurada para citar ações voltadas ao combate do desmatamento do Cerrado, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semar) não deu retorno até o fechamento desta reportagem. O espaço permanece aberto para futuros esclarecimentos.
1 comentário
Janaína · 27 de janeiro de 2023 às 11:41
Preocupe!