Kátia, o filme, começa com uma frase forte: “Meu pai sempre foi muito direto ao dizer que todo homossexual devia mesmo era morrer”. Dirigido por Karla Holanda, o longa acompanhou a rotina de Kátia Tapety por 20 dias, na pequena Colônia do Piauí, quase 400km ao sul de Teresina – foi lá onde cresceu e morou a primeira transexual eleita a um cargo político no Brasil, em 1992.
Três décadas depois, o Brasil atinge um número recorde de pessoas transgêneras concorrendo a uma vaga para prefeituras ou para câmaras de vereadores – foram mais de 270 candidaturas, mais que o triplo de 2016, quando 89 pessoas trans concorreram. Na votação, 26 foram eleitas (um crescimento de 225%), mas a conquista maior corria silenciosa antes mesmo do resultado do pleito: as eleições de 2020 foram as primeiras da história do Brasil em que candidatas e candidatos trans puderam optar pelo nome social nas urnas.
Romper com a exclusão em espaços majoritariamente brancos e masculinos é só uma das muitas batalhas diárias das pessoas transexuais. Apesar de poucos avanços em espaços que apontam para uma maior representatividade, ainda há pouco para comemorar – um cenário de violência e transfobia ainda é retrato do Brasil, que ocupa há 12 anos o posto de país que mais mata transexuais no mundo todo.
As vítimas, no geral mulheres, negras e pobres, ocupam geralmente lugares sociais de vulnerabilidade – fato muitas vezes consequente da rejeição familiar, marginalização econômica e exclusão no mercado de trabalho.
Há menos de uma semana para o Dia do Orgulho LGBTQIA+, comemorado hoje em todo o mundo, com centenas de campanhas em curso sobre o respeito à diversidade, um homem ateou fogo em uma mulher trans no centro de Recife. A vítima teve queimados 40% do corpo e está internada em estado grave. No Piauí, Maria Eduarda, jovem trans de Piripiri foi morta a tiros na noite do dia 24 de junho.
Um pouco da história de luta e resistência das mulheres trans, estigmatizadas e historicamente agredidas, é contada na nossa reportagem especial de hoje. Relatos de transexuais que procuraram na educação e no ativismo a possibilidade de terem direito a dignidade – e se destacaram no Piauí – e do Piauí para o mundo.
Kátia fez história
Não é possível separar a história do movimento transexual e travesti do país da vida de Jovanna Baby. Da mesma forma que estão entrelaçadas a transformação social da cidade de Picos, cidade ao sul do Piauí, e a chegada dessa baiana.
Jovanna Cardoso da Silva é uma mulher de voz potente e assertiva. Nasceu no extremo sul da Bahia e, ainda adolescente, aos 13 anos, deixou seu estado natal para dar vida ao movimento transexual e travesti no país. “Saí para construir minha identidade, ser feliz e revolucionar a mulher dentro de mim que tem desejo de mudança”, revela.
Em 1979, no Espírito Santo, começou a discutir direitos sociais e a se articular politicamente junto a prostitutas, na associação Damas da Noite. Em 1992, no Rio de Janeiro, criou a Associação de Travestis e Liberados do Brasil (ASTRAL).
Entretanto, foi no Piauí que resolveu fazer morada quando soube, através da mídia, que uma mulher transexual se tornara vereadora na cidade de Colônia do Piauí. “Foi a história de Kátia Tapety que me inspirou a querer desbravar esse estado lindo que eu amo e é minha pátria no coração”, conta. O tratamento respeitoso do eleitorado com a vereadora, acredita, fez diferença para que ela acreditasse em uma região mais respeitosa e feliz.
Em Picos, transformou uma cidade com traços de LGBTfobia, cujas histórias davam conta de casos de travestis apedrejados na rua, na única cidade do estado com uma Lei Orgânica de assistência social com diretrizes orçamentárias específicas para o grupo. Um projeto, orgulha-se, desenvolvido na base da educação e cultura. “Começamos a organizar paradas da diversidade, seminários, chamar a atenção da imprensa, qualificar professores e buscar a responsabilidade do poder público”, conta, acreditando que essas iniciativas foram fundamentais para transformar a cidade em lugar de acolhimento e respeito à diversidade.
Uma história que se entrelaça a várias outras vidas e que possibilitou abertura de portas e espaço para as atuais gerações, entre elas da professora Letícia Nascimento – a ela, a pesquisadora dedicou seu recém-lançado livro, Transfeminismos. “Quando falo que me orgulho da juventude também estou falando da Letícia que considero como uma filha”, diz, reconhecendo a importância de abrir caminhos. “Chutei a porta lá atrás, nos anos 70, e pedi que todas elas, trans e travestis, buscassem seus objetivos porque nós íamos conseguir”.
Rasgando a normatividade
Letícia Nascimento fará 32 anos daqui a pouco mais de um mês – faltando apenas 3 para superar a expectativa de vida de transexuais ou travestis no Brasil. Mas ela está viva, vivíssima e produzindo como nunca.
Mestra em pedagogia, Letícia é hoje professora da Universidade Federal do Piauí, no campus de Floriano. Paralelo a isso faz também doutorado em educação na mesma instituição – a sua pesquisa é sobre subjetividades transgênero na educação, com foco nos processos educacionais de travestis negras – algo que, empiricamente, sempre conheceu bem.
Letícia nasceu em Parnaíba, cidade onde sempre morou. Lá mesmo começou a integrar grupos ativistas pelos direitos políticos das pessoas trans. “Eu faço parte de grupos em todas as instâncias: local, regional e nacional”, comenta. “Essa atuação é muito importante porque a partir deles a gente consegue tentar intervir na construção e execução de políticas públicas”, pontua.
Durante boa parte da vivência no ensino superior ela ainda não assumia a identidade trans. “Isso só aconteceu agora, no doutorado”, acrescenta. “Para muitas pessoas, chegar ao ensino superior tem sido a possibilidade de ser quem se quer ser, de entrar no mercado de trabalho, estão conseguindo se assumir dentro da universidade”, observa.
Para ela, a presença de pessoas trans em espaços como a universidade, a política e outros segmentos institucionais é de extrema importância. “Porque são espaços que pensam a sociedade, que podem intervir socialmente e acabam ampliando a cidadania trans e rasgando a normatividade”, argumenta.
“Nós vivemos em um país que nega constantemente o direito de existir às pessoas trans”, critica. “Todo respirar nosso é um ato de resistência”. Para ela, além de violências e agressões físicas, há violências sutis contra sua existência toda vez que não respeitam sua identidade de gênero. “É um não respeito ao uso do banheiro, ao tratamento com os pronomes adequados, ao nome social”, explica. “E, por vezes, isso pode chegar à violência física e até a própria morte”.
Para mostrar como cada vez mais as pessoas devem estar abertas às diversas existências – que não necessariamente se encaixem na organização binária e cisgênera – Letícia escreveu o livro Transfeminismo, que acaba de ser lançado pela coleção Feminismos Plurais, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro. “Eu a conheci no Salipi em 2019 e, durante a sessão de autógrafos, conversamos e surgiu o convite para escrever o livro”. O livro tem evento de lançamento previsto para julho em Teresina.
Existência transgressora
Sempre elegante e com adornos que vão de turbante a flor nos cabelos, a piauiense Morena Caymmi recebe a todos no salão do Fitó, restaurante em São Paulo, cidade para onde se mudou há mais de uma década.
O restaurante é mais que um trabalho para a anfitriã – é uma casa de afetividade e também o direito à dignidade. Foi seu primeiro emprego de carteira assinada. Entrou como hostess e hoje ocupa o cargo de comunicação e hospitalidade do local.
Morena concluiu o curso de Jornalismo, que iniciou ainda em Teresina, já na grande cidade, contornando assim a triste marca sobre a situação educacional das pessoas trans – apenas 0,02% encontram-se no ensino superior, segundo dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Estima-se que cerca de 70% sequer concluíram o ensino médio.
Mas ela persistiu – mesmo muitas vezes tendo que se anular para permanecer no ambiente. Não fez muitos amigos e se sentia incompreendida ou com dificuldade de manter laços. Chegou até a perder muitas aulas por essa razão. “Eu passei por um certo momento de depressão, porque me sentia muito sozinha”, relembra.
O acesso à faculdade costuma acontecer paralelo a descobertas e aceitação de si. “Eu comecei minha transição dentro da faculdade”, conta Morena. “Foi quando resolvi entender que essa sou eu, que é assim que eu vou viver”, diz a jornalista, que passou também a ler e pesquisar mais sobre o assunto.
O resultado foi o trabalho “Bença, Mãezinha” (2017), livro-reportagem que escreveu e fotografou como trabalho final de conclusão de curso. No livro, ela conta a história de mulheres transexuais e travestis que ultrapassaram a expectativa de vida – 35 anos. “É um documento para registrar a admirável história de luta e resistência de pessoas sobreviventes”, destaca.
“Eu faço questão de mostrar que sou uma mulher transexual”, diz, orgulhosa. “Ter o direito de ter meu trabalho e minha casa. As estatísticas estão aí pra mostrar como as coisas poderiam ter sido”. Para ela, sua própria existência é uma afronta e um acontecimento: “Muitas pessoas que vão ao Fitó nunca viram ou conviveram com uma mulher trans”, comenta. “Mas a gente existe e precisa trabalhar e ter dignidade”.
Sempre estivemos gritando
“Eu só posso sonhar, porque as que vieram antes de mim sonharam que isso seria possível”, diz Ayra com firmeza ao relembrar as lutas de Jovanna, Letícia, Monique e tantas outras, que carrega como inspiração. Mulheres que marcam a existência trans no Piauí há mais de trinta anos.
Ayra Cristina Dias saiu do Pará para tentar uma carreira diferente da família, nos estudos. Na sua cidade natal, São Caetano de Odivelas, depois do fim do ensino médio, não se tem tanta alternativa. “A opção era trabalhar com a pesca, como a minha família tem feito durante a vida inteira”, conta. Aos 17 anos partiu, em busca de outro futuro. Hoje, aos 24, está concluindo em Teresina o curso de Serviço Social e, ao mesmo tempo, iniciando Jornalismo. Ela é a primeira da família a acessar o ensino superior.
Nos espaços acadêmicos, sua vivência foi atravessada por transfobia desde o momento da matrícula. Ao reivindicar o uso do nome social, teve seu direito desrespeitado na universidade. “Isso me lembrou uma frase que diz que a negação do uso do nome social às pessoas trans é um assassinato”, comenta. “Eu também compreendo dessa forma porque não só invisibiliza, mas nega a nossa existência”, reforça.
A jovem faz parte de uma nova geração que segue na luta por direitos à população trans e travestis, fazendo ativismo em grupos como o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais (Fonatrans) e Articulação Piauiense de Travestis e Transexuais (APTTRA). “Nos últimos anos a gente teve um processo considerável para que as pessoas trans pudessem ser mais vistas e, também, que suas vozes fossem escutadas”, conta. Mas, ao falar isso, imediatamente lembra dos espaços negados. “Tem um discurso falacioso da cisgeneridade, que é o de ‘dar voz’ a quem não tem voz”, critica. “Nós sempre tivemos voz, nós sempre estivemos gritando, as pessoas é que se negaram durante todo esse tempo a nos ouvir”.
Ayra se identifica enquanto pessoa trans há sete anos, mas o que marcou isso de fato na sua vida foi assumir-se para sua mãe. O momento selou o pacto de afeto entre elas – hoje, ela usa o mesmo nome da mãe, Cristina. “Minha mãe e minha avó ainda me chamam pelo meu nome civil e isso é muito difícil”, comenta.
“A minha mãe é uma pessoa que não teve acesso a discussões mais acadêmicas como eu tive”, diz, explicando. “Ela tem acesso à filha dela e isso eu não posso negar, porque ela também não me negou”, conclui. Ao lembrar do Dia do Orgulho LBGTQIA+, assume: “Eu tenho muito orgulho de ser a travesti que sou. Se me perguntassem, em uma outra vida, eu queria ser travesti de novo”.
* A frase do título é referência ao conto “A gente combinamos de não morrer”, de Conceição Evaristo (2015) – uma narrativa sobre as histórias de vida das pessoas situadas à margem da sociedade e a naturalização das políticas de morte para grupos minoritários.
0 comentário