Raimunda França aparece à porta e sacode a poeira de um pano de prato. Na rua Panamá, bairro Cristo Rei, zona Sul de Teresina, o saneamento básico e asfalto nunca chegaram. Com mais de 80 famílias da comunidade batizada de “terra prometida”, a ocupação foi registrada há pouco mais de seis anos e agora os moradores têm aos poucos elevado as casas de taipa com tijolos. A casa de Raimunda é uma dessas que ainda estão incompletas: metade barro e metade alvenaria. O vento da rua invade a casa levando poeira e os resíduos das várias construções ao redor da casa. “Parece que tudo tá sujo o tempo todo”, explica em um sorriso tímido.
A dona de casa tem 54 anos e ainda não se aposentou. O marido, Joaquim França, faz serviços de pedreiro. Para complementar a renda da família, desde que se mudaram para a Terra Prometida, em 2016, ela tem buscado “bicos” como lavadeira de roupa. O problema é que, desde a pandemia da Covid-19, as poucas pessoas que ainda procuram a mulher para fazer o serviço não aparecem mais. Chega a passar meses até que surjam novos serviços. A falta de dinheiro em casa reflete-se nas panelas – que nos últimos meses, tem se tornado cada vez mais vazias.
Sempre no começo de cada mês o casal vai ao supermercado. Compram tudo o que podem para garantir a alimentação até o mês seguinte. A carne tem ficado cada vez mais cara, então, optam por mais arroz, feijão e ovos. Se não recebem uma cesta básica doada pela paróquia do bairro, seguram as pontas apenas com esses três itens no prato. “A gente tem aprendido a viver com o pouco”, fala cabisbaixa. “Desde quando essa doença chegou, a gente tem sentido cada vez mais a pobreza batendo na porta”, conta à reportagem.
A consequência do coronavírus na economia sentida por Raimunda aparece na última pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Ibre): a pobreza piorou com a pandemia em todo o país. No Nordeste, o Piauí foi o estado que mais teve alta da pobreza – passando de 41,1% para 56,4%. A pesquisa considerou os índices de pobreza do Banco Mundial, que considera famílias cujas renda é de até R$400 ao mês.
A situação de Raimunda se assemelha com a do casal de vizinhos João Paulo e Márcia Batista. A sala da casa virou uma oficina improvisada dos eletrodomésticos que o técnico pega para consertar. Os serviços caíram bastante e, em alguns meses, o salário (mínimo) de Márcia tem sustentado a casa. Diferente de Raimunda, eles preferem fazer as compras a cada semana. “A gente compra e fica reparando no que tá faltando pra ir complementando durante a semana”, explica. “Tem dia que é um sufoco pensar no que vamos ter pra comer, mas nunca passamos fome”, relata Márcia.
Aquecendo a desigualdade, enquanto o pobre ficou cada vez mais pobre, o rico ficou bilionário. Se, de um lado no Brasil, a extrema pobreza flertou com 18 estados, do outro, o país ganhava 40 novos bilionários em 2021, ano de pandemia, segundo a Forbes. O patrimônio combinado dos bilionários do Brasil seria de R$1,9 trilhão. O ranking geral dos brasileiros mais ricos, no entanto, tem pouca diversidade de gênero e raça. Entre os dez maiores bilionários brasileiros, apenas pessoas brancas e uma única mulher.
É no Brasil dos desiguais, na periferia de Marcolândia, Sul do Piauí, que o casal Divina Santos e Paulo Marcel sobrevive, junto aos três filhos, com apenas R$ 635 que recebem do Auxílio Brasil. O benefício não é suficiente para dar conta de todas as despesas. A casa onde mora a família foi dada por um parente de Paulo, mas alimentação, conta de água, luz e gás ficam por conta do casal. As contas têm ultrapassado R$700. Na prática, é como se cada integrante da casa tivesse R$127 mensais.
Sem emprego há dois anos, Paulo está quase desistindo de procurar serviços por meio de currículos. Ele vende balinhas nos sinais, bares e restaurantes da cidade para garantir as refeições da família. O supermercado tem se tornado um lugar pouco frequentado pela família. “Quase não conseguimos comprar muita coisa lá”, pontua o desempregado. “Uma carne custa mais de R$20, então a gente desiste, vamos para o ovo ou a sardinha”, conta.
Famílias como a de Paulo e Divina têm engrossado as estatísticas da dura desigualdade no Piauí. Mais de 43% dos piauienses – quase metade da população – vive em situação de pobreza no estado – como apontam dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad). Os dados se referem a 2019, quando mais de 1,4 milhão de pessoas viviam com R$ 436 mensais no estado.
No Brasil não tem sido diferente. Em 2012, cerca de 27,6 milhões de brasileiros estavam na pobreza, segundo o último levantamento realizado pela FGV Social. Ou seja, 13% das pessoas no país encerraram 2021 vivendo com até R$ 290 por mês – o maior patamar desde 2012, pelo menos.
O auxílio recebido pela família que vive em Marcolândia é um dos principais programas criado pelo governo Jair Bolsonaro, em substituição ao Bolsa Família. O programa é mais robusto se comparado ao anterior – porém, não é uma saída para o fim da pobreza. Segundo o economista Venâncio Magalhães se, ao invés de focar em programas de transferência de renda, o governo apostasse em políticas de educação e saúde, além de uma inflação sob controle e um mercado de trabalho forte, seria mais eficaz tirar os brasileiros do mapa da fome.
Enquanto o governo gasta em média R$89,1 bilhões com transferência de renda, por exemplo, não consegue alcançar pessoas que estão dormindo na rua. “Esse programa não é evolução”, destaca o economista. “Ele tira a pessoa da linha da extrema pobreza para colocá-la na linha da pobreza, mas sem perspectiva de segurança alimentar ou moradia, por exemplo”, aponta.
A perda de empregos por conta da pandemia, somada à inflação, ainda tem sido uma das principais causadoras da pobreza. A alta inflacionária nos últimos meses tem se acelerado, ainda, sem previsão de trégua nos alimentos e habitação. No Nordeste, Venâncio aponta um cenário diferente de países ao Sul e Centro-Oeste do país: maior número de pessoas em programas sociais e mergulhadas no desemprego e no trabalho informal.
No segundo semestre de 2021, o estado atingiu pela primeira vez a marca de 14,9% desocupadas – aquelas com 14 anos ou mais de idade que estavam sem trabalho e procurando por uma ocupação. Ao todo, havia cerca de 212 mil desocupados, o maior índice histórico do Piauí. Outra face cruel da pobreza no Piauí tem sido a informalidade: a cada dez trabalhadores, seis estão trabalhando de forma informal.
Sobreviver de forma informal tem sido a solução para o entregador de aplicativo, Fábio Melo, desde 2020, quando foi demitido pela empresa onde trabalhava. Ele passa mais de 15 horas por dia, em três turnos, na busca para sustentar a família. O motorista se dá uma folga apenas no final de semana. Com a alta da gasolina, tem colocado as contas na ponta da caneta e repensado a atividade qu,e há dois anos, acreditou ser temporária. Sem expectativa de conseguir trabalho em Teresina, Fábio faz parte dos mais de 56 mil piauienses desalentados – que deixaram de procurar emprego acreditando que não há mais solução.
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