Ao entrar na Rua Maria de Araújo, conjunto Santa Fé, zona Sul de Teresina, uma mistura de sentidos é aguçada. O som que invade os ouvidos lembra uma queda d’água que poderia ser de cachoeira, combinando com a paisagem natural. Poucos passos depois, o olfato capta um odor incômodo. Logo a visão entra em campo desmanchando o imaginário: a cascata que corta o caminho e cai sobre o baixo relevo formando uma cascata é, na verdade, um grande esgoto a céu aberto.
No fim da cachoeira de dejetos, pequenos afloramentos de água se elevam e contrastam no ambiente. O local é abrigo de 12 nascentes que, junto com o lixo, são despejados no Rio Parnaíba. A competição entre esgoto e água é visivelmente injusta. Os resíduos vêm de três comunidades – Santa Fé, Planalto Santa Fé e Betinho – e se sobrepõem aos afluentes que chegam a ter vazão igual a cinco mil litros por hora. Há 30 anos, quando a região começou a ser habitada, os moradores aproveitavam a água que passava ali para utilizar nas atividades domésticas, quando faltava nas torneiras. Hoje, os afluentes que correm ali não resistem nem um quilômetro.
O local retrata apenas um dos diversos lugares na capital piauiense que não possuem coleta e tratamento de esgoto de qualidade. Segundo o Painel Saneamento Brasil, 66% da população teresinense não possuía coleta de esgoto até 2019. A porcentagem é maior que a nacional (45,9%). Ainda de acordo com dados da Águas de Teresina, desde o início da concessão em 2017, a porcentagem de casas da capital com rede de coleta e tratamento de esgoto subiu de 19% para 40%.
Os moradores tentam resolver o problema com limpeza frequente da área e pedidos de “não jogue lixo”, no local. Em razão da região ter várias nascentes, os protetores da região querem que ela se transforme em um parque ambiental, desejo solicitado à prefeitura há três anos. As famílias têm interesse em proteger o pouco da fauna e da flora ainda existente. “Já houve análise técnica, mas até agora continua do mesmo jeito”, lamenta Iratan Araújo, líder comunitário.
A falta de saneamento básico de qualidade para a população ocasiona também a transmissão de doenças por meio das águas, bem como a contaminação do solo, além de outros impactos ambientais. No conjunto Santa Fé, para além do incômodo com o lixo, outros problemas são amplificados. Apesar do Painel Saneamento Brasil apontar que 95,6% da população teresinense tem acesso à água, a qualidade do líquido que chega nas casas é questionável. “Quando abrimos a torneira, a água que sai é tão branca que parece que estou tomando leite”, conta a dona de casa Ivone Cardeal. Para contornar a situação, ela compra água mineral para consumo da família.
Em razão da situação, o local funciona como abrigo para furtos e esconderijos. “Era para ser um local onde as crianças poderiam brincar, mas acontece o inverso”, explica Ivone. A situação fez com que colocasse sua casa à venda, mas ao longo de uma década, nunca conseguiu comprador. “Quem quer morar na frente de um lixão?”, indaga a dona de casa.
Efeito cascata
Segundo o Ranking do Saneamento de 2021, feito pelo Instituto Trata Brasil em parceria com a GO Associados, Teresina está entre os 20 piores municípios que ofertam este serviço no país. A posição permanece sem evolução nos últimos oito anos.
O problema com a falta de abastecimento de água potável, coleta e tratamento do esgoto e lixo de forma precária também pode ocasionar a falta de desenvolvimento de uma determinada região. A falta de água em alguns lugares ou a ausência de uma estrutura qualificada aumenta o estigma de setores que funcionam em zonas periféricas da cidade.
Na zona Leste da capital, a trancista Lara Atau diz ter visto a ampliação da rede de saneamento nos últimos cinco anos. Apesar disso, ela confessa que essa realidade não representa todas as áreas periféricas da região em que mora e trabalha, no bairro Pedra Mole. “Minha casa fica em um conjunto, mas se você procura pessoas nas proximidades, o saneamento é bem precário”, comenta.
Do outro lado da cidade, na região Sudeste, o problema afeta diretamente o trabalho de Silas Trindade, assistente e um dos proprietários de um salão de beleza no bairro Dirceu II. Apesar de ter melhorado ao longo dos anos, o período chuvoso representa uma dor de cabeça a mais para o profissional. “As vias ficam alagadas porque não tem para onde a água escoar “, relata. “E esgoto a céu aberto causa incômodo não só para moradores, mas também para os clientes”, completa. Não há fidelidade que resista aos transtornos e mau cheiro. “Aqui ou é esgoto a céu aberto ou é alagamento”, reclama Silas, destacando que saneamento é uma questão de saúde pública e dignidade.
O proprietário já levou a situação para a associação de moradores que tem buscado soluções junto a prefeitura. Até o momento não há nenhuma previsão para melhoria. Enquanto isso, a situação vai se naturalizando entre a comunidade e trazendo problemas econômicos para a região – um transtorno que permanece mesmo com o crescimento do bairro e chega a ser mais velho que alguns moradores do local.
Para Jean Prost Moscatdi, professor do Departamento de Recursos Hídricos, Geotecnia e Saneamento Ambiental da Universidade Federal do Piauí, as consequências econômicas ocorrem porque não só os moradores precisam de água de qualidade, mas também as empresas e o comércio. “Se a água não é ofertada de forma a apresentar tais qualidades, as empresas precisam investir em mais recursos para tratá-la e isso começa a encarecer sua linha de produção e o seu produto final”, explica. “É um efeito cascata”, reforça o pesquisador.
Saneamento básico de qualidade para todos
Saneamento básico envolve serviços voltados para o abastecimento de água potável, coleta e tratamento do esgoto e limpeza urbana, além da redução e reciclagem do lixo. Com a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento em 2020, as metas de universalização do acesso ao saneamento básico no país estabelecem que os contratos de prestação dos serviços devem garantir o atendimento de 99% da população com água potável – e 90% com coleta e tratamento de esgotos, até o ano de 2033. No Piauí, o Governo do Estado publicou, em julho deste ano, decreto que adequa os serviços de saneamento ao novo marco regulatório e institui as Microrregiões de Saneamento Básico.
O documento é uma tentativa de mudar a realidade no Brasil sobre este cenário. Segundo o Ranking do Saneamento de 2021, o país possui aproximadamente 100 milhões de pessoas sem acesso à coleta de esgotos – sendo 21,7 milhões nos maiores municípios. Até 2019, o país não tratava nem metade dos esgotos que gera, o
que representa 5,3 mil piscinas olímpicas de esgotos sem tratamento jogadas na natureza, todos os dias.
Para o pesquisador Jean Moscti, as soluções para o problema de saneamento básico também estão relacionadas a ações preventivas, além de remediação. “As preventivas são feitas pela aplicação de políticas públicas e estudos de impacto ambiental, além de políticas de fiscalização”, explica Jean. “Quanto as de remediação, temos a construção de adutoras, estações de tratamento de água e esgoto, além da proteção de mananciais, margens e outras ações não previstas no plano diretor e políticas públicas”, finaliza o pesquisador.
Procurada, a empresa Águas de Teresina disse não possuir os dados sobre a cobertura da rede de esgoto nos bairros de Teresina.
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