terça-feira, 7 de maio de 2024

Esgoto a céu aberto

66% dos teresinenses não possuem coleta de esgoto - falta de saneamento prejudica saúde, negócios e a natureza

16 de setembro de 2021

Ao entrar na Rua Maria de Araújo, conjunto Santa Fé, zona Sul de Teresina, uma mistura de sentidos é aguçada. O som que invade os ouvidos lembra uma queda d’água que poderia ser de cachoeira, combinando com a paisagem natural. Poucos passos depois, o olfato capta um odor incômodo. Logo a visão entra em campo desmanchando o imaginário: a cascata que corta o caminho e cai sobre o baixo relevo formando uma cascata é, na verdade, um grande esgoto a céu aberto.

No fim da cachoeira de dejetos, pequenos afloramentos de água se elevam e contrastam no ambiente. O local é abrigo de 12 nascentes que, junto com o lixo, são despejados no Rio Parnaíba. A competição entre esgoto e água é visivelmente injusta. Os resíduos vêm de três comunidades – Santa Fé, Planalto Santa Fé e Betinho – e se sobrepõem aos afluentes que chegam a ter vazão igual a cinco mil litros por hora. Há 30 anos, quando a região começou a ser habitada, os moradores aproveitavam a água que passava ali para utilizar nas atividades domésticas, quando faltava nas torneiras. Hoje, os afluentes que correm ali não resistem nem um quilômetro.

 

Nascente de água mineral no bairro Santa Fé, Teresina (Foto: Bernardo Blanche)

 

O local retrata apenas um dos diversos lugares na capital piauiense que não possuem coleta e tratamento de esgoto de qualidade. Segundo o Painel Saneamento Brasil, 66% da população teresinense não possuía coleta de esgoto até 2019. A porcentagem é maior que a nacional (45,9%). Ainda de acordo com dados da Águas de Teresina, desde o início da concessão em 2017, a porcentagem de casas da capital com rede de coleta e tratamento de esgoto subiu de 19% para 40%. 

Os moradores tentam resolver o problema com limpeza frequente da área e pedidos de “não jogue lixo”, no local. Em razão da região ter várias nascentes, os protetores da região querem que ela se transforme em um parque ambiental, desejo solicitado à prefeitura há três anos. As famílias têm interesse em proteger o pouco da fauna e da flora ainda existente. “Já houve análise técnica, mas até agora continua do mesmo jeito”, lamenta Iratan Araújo, líder comunitário.

 

 

A falta de saneamento básico de qualidade para a população ocasiona também a transmissão de doenças por meio das águas, bem como a contaminação do solo, além de outros impactos ambientais. No conjunto Santa Fé, para além do incômodo com o lixo, outros problemas são amplificados. Apesar do Painel Saneamento Brasil apontar que 95,6% da população teresinense tem acesso à água, a qualidade do líquido que chega nas casas é questionável. “Quando abrimos a torneira, a água que sai é tão branca que parece que estou tomando leite”, conta a dona de casa Ivone Cardeal. Para contornar a situação, ela compra água mineral para consumo da família.

Em razão da situação, o local funciona como abrigo para furtos e esconderijos. “Era para ser um local onde as crianças poderiam brincar, mas acontece o inverso”, explica Ivone. A situação fez com que colocasse sua casa à venda, mas ao longo de uma década, nunca conseguiu comprador. “Quem quer morar na frente de um lixão?”, indaga a dona de casa.

Efeito cascata

Segundo o Ranking do Saneamento de 2021, feito pelo Instituto Trata Brasil em parceria com a GO Associados, Teresina está entre os 20 piores municípios que ofertam este serviço no país. A posição permanece sem evolução nos últimos oito anos.

O problema com a falta de abastecimento de água potável, coleta e tratamento do esgoto e lixo de forma precária também pode ocasionar a falta de desenvolvimento de uma determinada região. A falta de água em alguns lugares ou a ausência de uma estrutura qualificada aumenta o estigma de setores que funcionam em zonas periféricas da cidade.

 

 

Na zona Leste da capital, a trancista Lara Atau diz ter visto a ampliação da rede de saneamento nos últimos cinco anos. Apesar disso, ela confessa que essa realidade não representa todas as áreas periféricas da região em que mora e trabalha, no bairro Pedra Mole. “Minha casa fica em um conjunto, mas se você procura pessoas nas proximidades, o saneamento é bem precário”, comenta.

Do outro lado da cidade, na região Sudeste, o problema afeta diretamente o trabalho de Silas Trindade, assistente e um dos proprietários de um salão de beleza no bairro Dirceu II.  Apesar de ter melhorado ao longo dos anos, o período chuvoso representa uma dor de cabeça a mais para o profissional. “As vias ficam alagadas porque não tem para onde a água escoar “, relata. “E esgoto a céu aberto causa incômodo não só para moradores, mas também para os clientes”, completa. Não há fidelidade que resista aos transtornos e mau cheiro. “Aqui ou é esgoto a céu aberto ou é alagamento”, reclama Silas, destacando que saneamento é uma questão de saúde pública e dignidade.

O proprietário já levou a situação para a associação de moradores que tem buscado soluções junto a prefeitura. Até o momento não há nenhuma previsão para melhoria. Enquanto isso, a situação vai se naturalizando entre a comunidade e trazendo problemas econômicos para a região – um transtorno que permanece mesmo com o crescimento do bairro e chega a ser mais velho que alguns moradores do local. 

Para Jean Prost Moscatdi, professor do Departamento de Recursos Hídricos, Geotecnia e Saneamento Ambiental da Universidade Federal do Piauí,  as consequências econômicas ocorrem porque não só os moradores precisam de água de qualidade, mas também as empresas e o comércio. “Se a água não é ofertada de forma a apresentar tais qualidades, as empresas precisam investir em mais recursos para tratá-la e isso começa a encarecer sua linha de produção e o seu produto final”, explica. “É um efeito cascata”, reforça o pesquisador.

 

Saneamento básico de qualidade para todos

Saneamento básico envolve serviços voltados para o abastecimento de água potável, coleta e tratamento do esgoto e limpeza urbana, além da redução e reciclagem do lixo. Com a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento em 2020, as metas de universalização do acesso ao saneamento básico no país estabelecem que os contratos de prestação dos serviços devem garantir o atendimento de 99% da população com água potável – e 90% com coleta e tratamento de esgotos, até o ano de 2033. No Piauí, o Governo do Estado publicou, em julho deste ano, decreto que adequa os serviços de saneamento ao novo marco regulatório e institui as Microrregiões de Saneamento Básico.

O documento é uma tentativa de mudar a realidade no Brasil sobre este cenário. Segundo o Ranking do Saneamento de 2021, o país possui aproximadamente 100 milhões de pessoas sem acesso à coleta de esgotos – sendo 21,7 milhões nos maiores municípios. Até 2019, o país não tratava nem metade dos esgotos que gera, o

que representa 5,3 mil piscinas olímpicas de esgotos sem tratamento jogadas na natureza, todos os dias.

Para o pesquisador Jean Moscti, as soluções para o problema de saneamento básico também estão relacionadas a ações preventivas, além de remediação. “As preventivas são feitas pela aplicação de políticas públicas e estudos de impacto ambiental, além de políticas de fiscalização”, explica Jean. “Quanto as de remediação, temos a construção de adutoras, estações de tratamento de água e esgoto, além da proteção de mananciais, margens e outras ações não previstas no plano diretor e políticas públicas”, finaliza o pesquisador.

Procurada, a empresa Águas de Teresina disse não possuir os dados sobre a cobertura da rede de esgoto nos bairros de Teresina.

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Categorias: Especial

Aldenora Cavalcante

Jornalista, podcaster e mestra em comunicação pela Universidade do Porto.

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