domingo, 24 de novembro de 2024

Eu não ando só

No dia a dia das comunidades, mulheres são linha de frente na busca por melhorias e direitos no Piauí

08 de março de 2022

Edição Luana Sena

Quando Célia Gomes chegou à Vila Irmã Dulce, zona Sul de Teresina, na primeira década dos anos 2000, a comunidade se organizava lentamente. A falta de saneamento básico, assistência social e comida eram as principais dificuldades no cotidiano dos moradores da vila – à época, considerada a segunda maior favela da América Latina. Vendo como as políticas públicas chegavam devagar para os seus vizinhos, em especial para mulheres em situação de vulnerabilidade, a presidente da Associação das Prostitutas do Piauí (Aprospi) somou as ações já realizadas por elas a outras voltadas aos moradores da região.

Na casa de Célia, um grande pátio reserva mesas e cadeiras para quem chega. O portão, sempre aberto, revela que todos podem ser bem vindos. E as visitas não demoram a chegar: vizinhos, colegas e pessoas que passam batem palmas para chamar a dona da casa para conversar, dividir ou resolver problemas – mas também compartilhar projetos.

Nos últimos anos, Célia tem voltado suas ações para mulheres – em especial prostitutas em situação de vulnerabilidade. Durante o dia, a casa vira uma escola: cursos de informática, costura, artesanato e fabricação de materiais de limpeza convocam as mulheres para se capacitarem, resultando em fonte de renda. “A ideia é fazer com que elas tenham uma escolha, porque muitas não têm e acabam ficando mais vulneráveis”, explica a mulher.

Uma luta que a ex-prostituta tem travado é contra o HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis. Isso porque, educação sexual é um assunto que não chega para meninas e mulheres da comunidade. “A gente acaba fazendo um trabalho que o governo não faz”, declara. Célia comemora uma conquista pela Aprospi na região: a introdução da camisinha feminina no dia a dia das mulheres. Antes, o preservativo era visto com estranheza. “Faz muita diferença você falar com sinceridade com as pessoas, ao invés de falar bonito e ninguém entender”, comenta. “A gente explicava, de forma acessível, que isso poderia salvar a vida delas”.

À frente do movimento social há quase uma década, Célia conta que, nos últimos anos, já viu de quase tudo e já resolveu quase todo tipo de problema: do desemprego à fome, de caso de vida a caso de morte. Quando não consegue, apela para a fé – é devota de Nossa Senhora de Fátima. Aos 55 anos, não pretende se aposentar da militância e sonha em criar uma casa para abrigar filhos de prostitutas. O local ideal teria quadra de esportes, sala de balé, quartos coloridos e não faltaria espaço para esperança. “A gente não pode parar de sonhar”, diz. “A vida só acaba quando a esperança morre”.

Célia não anda sozinha. Ela tem consigo uma rede de mulheres, igualmente articuladas. Entre elas está Josiane Borges. A amizade nasceu na zona Sul, entre o cotidiano de dificuldades da região. No bairro Areias, na invasão do Parque Palmeirais, Josiane não se conformava em ver o abandono dos poderes com a região. Assim como a amiga, decidiu se organizar e fundou a Associação dos Moradores do Parque Palmeirais.

Josiane Borges e Célia Gomes: a luta coletiva de mulheres. (Foto: Vitória Pilar)

Há pouco menos de uma década, ela lembra que as mulheres não podiam usar salto alto na rua porque não havia calçamento e tudo era tomado pelo barro. Água encanada era um luxo para os moradores e parecia uma realidade distante. “Me doía ver que as pessoas não tinham o básico só porque onde morávamos não tinha gente importante”, declara, “Afinal, a gente não importa?”

Pouco mais de uma década, a situação mudou. Quase 100% do bairro possui calçamento e a água desce pelas torneiras das casas. Josiane, desde então, é mais que uma líder da comunidade – passou a ser uma espécie de amiga de todos. Na sua casa não faltam pessoas pedindo apoio para procurar um emprego, uma cesta básica ou ajuda para acessar algum benefício social. Da criança ao idoso, Josiane recebe sem restrições.

O que também não falta é o assédio de candidatos e pré-candidatos em período eleitoral. As visitas contrastam com a ausência do poder público fora da época de campanha. Se, durante o ano, Josiane é uma peça que incomoda cobrando ações dos políticos, nesta época ela é vista como uma boa cabo eleitoral. “A líder conhece todo mundo, sabe dos problemas da comunidade, sabe quem são as pessoas”, explica. “Tudo que a gente tem hoje é por conta da luta da Associação. Se a gente fosse esperar promessas, não teríamos saído do barro”, declara.

A maioria das líderes de comunidade se entendem na militância após certa idade – seja pela experiência como também pelas responsabilidades. Com Iara Beatriz Carvalho, foi diferente: aos 19 anos, ela descia e subia as ruas do Parque das Esplanadas para cobrar as casas que viriam do programa habitacional “Minha Casa, Minha Vida” aos moradores da região. A menina, em 2008, participava de reuniões com gestores e representava a comunidade para saber da entrega das moradias. À época, boa parte dos moradores viviam situação de extrema pobreza e a esperança de um lar previa dias melhores para os moradores.

Iara lembra das dificuldades enfrentadas pela região, ainda considerada uma invasão. Com o passar do tempo, o ex-presidente da Associação dos Moradores do Parque das Esplanadas não conseguiu seguir com as demandas por problemas de saúde. Foi então que ela e outras mulheres da comunidade tomaram a frente da diretoria e assumiram uma gestão exclusivamente feminina. Até o final de 2010, cerca de 15 casas foram entregues à comunidade.

Atualmente, na vice-presidência da Associação, Iara conta como foi difícil dar tom à Associação. Por ser muito jovem, ela relembra que sofreu dificuldade de aceitação da própria comunidade, por ter uma representante tão jovem. Esse desafio foi driblado quando, ao longo da gestão, ela conseguia trazer projetos dentro e fora do poder público. Entre essas conquistas, a chegada de água para a comunidade da Esplanada. “Devagarinho fomos conseguindo a nossa horta comunitária, um campo de futebol e asfalto”, conta. “As mulheres da associação deram uma nova cara para a Esplanada”.

A mobilização feminina pode fazer a diferença e mudar a história de comunidades inteiras. Há 166 quilômetros de Teresina, próximo ao município de Piripiri, um grupo de mulheres se articula com propósitos em comum: economia local, comunidade e um fruto verde, com flores e cheiro forte, conhecido como pequi. São elas, as Mulheres Organizadas.

Tudo começou quando a região ainda era um assentamento. Por lá, o grupo de mulheres decidiu realizar o Festival do Pequi – o fruto, abundante nos quintais das casas, criou uma conexão para que todas elas pudessem se organizar em prol dos seus direitos. Não que as mulheres não fizessem isso antes mas, a realização do evento anual há mais de uma década confirmou que, juntas, elas poderiam fazer mais pelas suas famílias e comunidades.

Tudo começou de forma simples. Na época, não havia muitos recursos para uma grande realização. A ideia era reunir receitas que elas já faziam em casa, desta vez, convidando o público de fora. Entre os pratos apresentados estavam a galinha caipira, maria isabel, além de doces, geléias, licor, sorvete e tudo aquilo que combinasse com o gosto forte do pequi. Nos últimos anos, o festival passou a atrair pessoas de todo o Piauí – a última edição, antes da pandemia da Covid-19, reuniu cerca de cinco mil pessoas.

Mulheres organizadas de Piripiri (Foto: Alex Galvão)

“A gente entende que se uma mulher precisa de algo, a gente tá aqui para ajudar, seja com uma comida, um conselho, uma ajuda financeira”, explica Maria Cleide dos Santos, vice-presidente da Associação das Mulheres Organizadas. “Podemos não ter muito, mas temos a nós mesmas, e isso nos fortalece”, declara.

Assim como as mulheres do Pequi, as marisqueiras de Ilha Grande, litoral do Piauí, também entendem de força e união feminina. Lá do município, um grupo de mulheres catam e vendem frutos do mar, fundou e formalizou, em 2009, uma associação para atender as demandas e garantias das trabalhadoras da região litorânea. Ao longo desses anos, a Associação das Marisqueiras de Ilha Grande se articulou com órgãos e fundações para realização, acompanhamento e apoio ao trabalho das mulheres da região.

Com a pandemia da Covid-19, o contato precisou diminuir. Por conta das dificuldades de conexão, as mulheres marisqueiras se organizaram para a instalação de uma torre a fim de atrair sinal de internet à comunidade. O feito permitiu continuar o negócio online com os produtos da região. “A gente vende o que dá: marisco, coentro, cebola, feijão, maxixe”, conta Luiza Santos, vice-presidenta da Associação de Marisqueiras. “E a gente tem muitos apoiadores, viu? Não podemos ficar paradas”.

Festival do Pequi junta a força e tradição das mulheres (Foto: Alex Galvão)

Para elas o assunto da mulher é assunto da comunidade. Por muito tempo, assuntos como violência doméstica foram silenciados na comunidade – seja pelo machismo, desinformação, tabu ou dependência financeira das mulheres. “A gente possui voz, direitos e força”, afirma Luiza orgulhosa. “Isso ninguém rouba da gente mais”.

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Categorias: Reportagem

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