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Festa do asfalto

Deputados destinam maior parte das verbas parlamentares para pequenas obras de pavimentação e festejos no Piauí

24 de maio de 2022

“Notícia boa para o sul do Piauí”, diz o post de um parlamentar, nas redes sociais, comemorando 11km de asfalto recuperado entre as cidades de Curimatá e Redenção do Gurgueia. Deputados estaduais, cujas principal função deve ser legislar pela população e fiscalizar o trabalho do governador, preocupam-se em conseguir obras performando papéis de subgovernadores pelo interior do estado.

Aos deputados estaduais cabe a função de propor, emendar ou alterar os projetos de lei que representem os interesses da população – desde que eles não entrem em conflito com as normas federais ou municipais. Legislar sobre tudo que não é atribuição da União ou dos municípios. Eles podem, por exemplo, criar tributos estaduais, instituir regiões metropolitanas, aprovar leis sobre o funcionamento de instituições estaduais como a Polícia Civil ou o Ministério Público, entre outros.

Mas não é esse tipo de atuação que vem sendo demonstrada nas redes sociais. Em seus perfis, um dos principais canais de contado entre parlamentares e a população, nos dias atuais, os parlamentares inauguram obras de pavimentação e vangloriam-se de tais feitos.

O oestadopiaui.com analisou o perfil no Instagram de cinco deputados estaduais do Piauí e detectou apenas duas publicações sobre fiscalização de obras ou ações do governo – a quantidade esmagadora de conteúdo é sobre a destinação de emendas para determinados setores da sociedade.

O que são as emendas impositivas?

As emendas parlamentares impositivas são a parte do orçamento público cuja aplicação é feita pelo Executivo estadual e indicada por deputados estaduais. Recebem esse nome porque são realizadas por meio de emendas ao projeto de lei orçamentária, que é votado anualmente pelos parlamentares para o ano seguinte. Assim, cada deputado pode financiar obras ou projetos nos municípios, como a compra de ambulâncias ou a construção de equipamentos públicos.

As emendas parlamentares seriam uma forma de descentralizar o orçamento, aumentando a participação de deputados e senadores no processo de definição do uso do dinheiro público. Entretanto, há muitos indícios de que esse instrumento foi descaracterizado – as emendas são destinadas aos municípios levando em consideração a base eleitoral de cada deputado.

Leia mais: Educação financeira, voto consciente e participação popular: entenda o pilar para um orçamento público que atenda a sociedade

Sem forró

Em 2019, O Tribunal de Contas do Estado do Piauí (TCE-PI) divulgou um levantamento sobre as emendas parlamentares impositivas no âmbito do estado do Piauí. O documento traz um diagnóstico dos processos de concessão, planejamento e execução das emendas parlamentares ocorridas no estado.

O estudo apontou que, entre 2017 e 2019, a alocação das emendas sem o devido planejamento levou a um número excessivo de movimentações orçamentárias ao longo do ano (superior a 100% da dotação), o que resultou na não utilização de parcela considerável desses recursos. Nos anos de 2017 e 2018, dos mais de R$ 81 milhões destinados a emendas parlamentares, aproximadamente 26% (R$ 21 milhões) não foram executados.

O relatório demonstrou que mais da metade das emendas impositivas no Piauí em três anos foram destinadas ao segmento “cultura”, com vistas à realização de festividades e à contratação de bandas/artistas. O valor chegou a R $11 milhões durante o ano de 2019, o que corresponde a 76,66% de todas as emendas executadas.

A situação estadual diverge do que acontece no governo federal, que determina que 50% do montante destinado às emendas impositivas deve ser necessariamente empregado em ações e serviços públicos de saúde.

Porcentagem de emendas impositivas destinadas aos setores da sociedade no ano de 2019.

Um caso recente, envolvendo o uso de verbas parlamentares, foi o cancelamento do show do artista Wesley Safadão, na cidade de São Pedro do Piauí, a 110 km da capital, Teresina. No dia 28 de abril deste ano, a Justiça proibiu que a prefeitura do município contratasse o cantor para uma apresentação no aniversário da cidade, que aconteceria em 20 de junho. Conforme a ação do Ministério Público do estado, o município desembolsaria R$550 mil para a contratação do artista, que faria um show de 1 hora e 20 minutos.

O show foi anunciado pelo prefeito Junior Bill (PP), que chegou a recorrer da decisão. Mas, o desembargador Raimundo Nonato da Costa Alencar recusou o recurso e manteve a suspensão do evento, por considerar o valor exorbitante e avaliando que a prefeitura teria demandas mais importantes.

A decisão foi em razão das dificuldades enfrentadas pelo município, que vem sofrendo com uma enorme precariedade nos serviços públicos, como educação, saúde, saneamento básico e outros. Por isso, a suspensão do evento foi utilizada como um meio de proteger o patrimônio público. A decisão do juiz informa que “existem inúmeros artistas que prestam serviço de qualidade por preços infinitamente menores, não havendo necessidade para a contratação de Wesley”.

Leia mais: Em ano eleitoral, shows de Wesley Safadão pautam discussão entre poderes no Piauí

Nossa reportagem tentou contato com a Secretaria de Fazenda (Sefaz-PI) e com a Secretaria de Estado de Planejamento (Seplan-PI) para colher dados oficiais sobre a destinação das emendas parlamentares. Segundo a Lei de Acesso à Informação, Lei 12.527, cabe aos órgãos e às entidades do poder público assegurar uma gestão transparente, de modo que é obrigatória a divulgação de dados de interesse da população em sites dos órgãos na internet – fato que não ocorre nos sites dos órgãos em questão. Até o fechamento desta reportagem não obtivemos retorno das assessorias. O espaço está aberto para esclarecimentos.

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