“O coronavírus é muito chato, ele não deixa a gente abraçar as pessoas e é ruim porque quem pega pode até morrer”. Essas são as palavras de João Gabriel, garoto de apenas sete anos, que teve as aulas escolares interrompidas no período inicial da crise sanitária. Para além da mudança brusca de rotina, a criança teve que conviver também com o luto: João perdeu duas tias para a Covid-19 no último ano.
Apesar de pertencerem ao grupo menos afetado pelo contágio do coronavírus – crianças representam os casos menos graves, embora sejam vetores de transmissão – elas também foram profundamente impactadas, em diversos aspectos, pela pandemia. Um estudo realizado pela Fiocruz sobre o impacto da Covid-19 entre crianças detectou que, mesmo com baixos índices de infecções, as crianças estão suscetíveis às repercussões psicossociais da pandemia.
Entre as reações emocionais e alterações comportamentais frequentemente apresentadas pelas crianças durante a pandemia, de acordo com o estudo, destacam-se: dificuldades de concentração, irritabilidade, medo, inquietação, tédio, sensação de solidão, alterações no padrão de sono e alimentação.
Sylvia Fernanda, mãe de João Gabriel, conta que o filho passou a ter muito medo quando teve que retornar às aulas presenciais e que, talvez, a morte das tias também intensificou a sensação. “Sempre que comentávamos em casa que alguém estava com Covid, ele nos questionava se a pessoa ia morrer”, relata a mãe.
A psicóloga infantil Maíra Lima comenta que todo excesso pode trazer algum prejuízo – o excesso de medo, de ansiedade e de cuidado não é diferente. Não se deve abandonar as recomendações dos órgãos sanitários competentes, mas é necessário aprender a como passá-los de forma lúdica e leve para os pequenos. “As restrições e cuidados devem entrar aos poucos na rotina da criança, para que isso não as afete emocionalmente”, explica.
João Gabriel teve que se adaptar às novas rotinas de cuidados e restrições trazidas pela Covid-19 – já Caetano, hoje com um ano e oito meses, já conheceu o mundo com os impactos da pandemia. Tassia Carvalho, mãe do Caetano, conta que a gravidez foi bastante planejada – mas, no final da gestação, teve um problema detectado e precisava de uma ultrassom, e teve que enfrentá-lo em meio a uma crise sanitária. “As clínicas estavam todas fechadas e só consegui ir em uma, que só recebia pacientes com suspeita de Covid, porque conhecia um dos médicos”, diz. “Era cenário de guerra, todo mundo vestido de branco, empacotado”, relata.
Tassia precisou fazer um parto prematuro no início de abril – apenas o marido pode acompanhá-la na maternidade. Ela relembra que quando estava internada, um dos médicos da maternidade gritava pelos corredores, pedindo para todo mundo se afastar, usar máscara e proibindo o uso de celular na sala de parto. “Eu não tenho nenhum registro fotográfico do nascimento do meu filho”, lamenta.
Caetano nasceu em 4 de abril de 2020 e ficou 15 dias na UTI Neonatal – nem ele nem Tássia puderam receber visitas de familiares e amigos. “Foram os piores dias da minha vida”, ela relembra. Quando ele teve alta, receberam uma série de recomendações médicas – fazer fisioterapia, ir num neuropediatra, fazer vários exames. Na prática, só conseguiram levá-lo presencialmente ao pediatra quando Caetano completou três meses. “Meus pais só conheceram o bebê depois de um mês que ele teve alta”, conta.
No período de um a três anos de idade, a criança vive um momento crucial no desenvolvimento de diversas habilidades cognitivas e de socialização. Essa evolução vem sendo prejudicada de maneira significativa pela necessidade de distanciamento social. Com Caetano não foi diferente. Com a flexibilização das restrições, sua mãe começou a receber as primeiras visitas em casa, mas relata que teve muito problema com socialização do filho no início – ele chorava com a chegada de estranhos, não aceitava ir para o colo e não gostava de sair de casa nem de andar de carro – o bebê associava o uso da máscara com essas atividades e costumava chorar bastante.
A psicóloga explica que, a falta de socialização pode trazer prejuízos consideráveis para o desenvolvimento, tendo em vista que o ser humano é um ser sociável – ou seja, precisa estar convivendo em grupo, se comunicando, aprendendo e crescendo uns com os outros. “As crianças aprendem e se desenvolvem dessa forma, socializando”, comenta. Ao brincar, além das regras sociais, elas aprendem a lidar com a frustração, desenvolvem o equilíbrio emocional, entre outras coisas importantes que levarão para a vida toda.
Tássia sempre ficou muito atenta aos marcos de desenvolvimento de Caetano, tanto pela prematuridade como pela pandemia. “Sempre estimulei e brinquei bastante, e não permito o uso de telas”, comenta. Ela explica que, em certo momento sentiu que o filho precisava de mais socialização – colocou-o em uma casinha de brincar, onde ele fica por duas horas e meia, duas vezes por semana. “Foi gritante a diferença no desenvolvimento dele”, observa. “Apesar de todo o estímulo que fazíamos em casa, nada se compara a socialização com outras pessoas e crianças”.
Maíra dá dicas de como introduzir essa nova realidade na vida das crianças: criar histórias para contar com seus personagens preferidos, mostrando-os indo para a escola, por exemplo. “Lá eles podem ter sua temperatura medida, estarão usando máscara, ou até mesmo fazendo o temido teste Swab”, diz a especialista. Levar a nova realidade para dentro da fantasia pode fazer com que, aos poucos, as crianças possam ir se adaptando sem medo ou ansiedade.
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