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Lugar reservado

De pai para filho, do marido a esposa, do avô ao neto: herança de apoio dificulta a renovação política no Piauí

02 de dezembro de 2021

Não é mera coincidência a repetição de sobrenomes entre os políticos. A sensação de que são sempre os mesmos grupos de pessoas e famílias ocupando cargos de poder no governo e mantendo a concentração de uma elite econômica tem até nome e é comum no Piauí: oligarquia. 

A palavra tem origem grega e significa “governo de poucos”. A expressão era usada como uma forma de criticar determinado governo em que um pequeno grupo, pertencente a uma mesma família, um mesmo partido político ou grupo econômico, controlava todas as ações do regime. 

No Brasil, de acordo com pesquisa realizada pela ONG Transparência Brasil (2018), quase a metade dos deputados federais eleitos em 2014 são herdeiros políticos – ou seja: foram eleitos graças ao capital político de parentes diretos que já ocupavam algum cargo eletivo. O levantamento foi feito logo após as eleições legislativas e revelou um aumento de 5% do número de herdeiros políticos eleitos, em comparação ao pleito de 2010. No Senado Federal, a proporção é ainda maior: seis entre cada 10 senadores fazem parte de clãs familiares. 

Em relação às regiões de origem dos deputados, no Nordeste, aqueles que têm ou tiveram parentes com carreira política representam 60% do total da bancada. Na região Sul estão em menor número: são 34%. No Senado, por sua vez, a bancada nordestina é composta por 70% de herdeiros políticos. Nas demais regiões, variam entre 50% a 67%. 

No Piauí não é diferente. Um levantamento feito pelo oestadodopiaui.com identificou que, só no pleito de 2014, dos 30 deputados estaduais, 20 tinham algum grau de parentesco com políticos piauienses. 

Atualmente, esse fenômeno passou a ser observado não só na Assembleia Legislativa como também na Câmara de vereadores onde dos 29 eleitos, 10 possuem heranças políticas. A prática tem se tornado tão comum  que, nas eleições de 2022, o MDB discute colocar uma chapa já denominada nos bastidores de “chapa dos filhos” – por ela devem concorrer a deputado federal o filho de Marcelo Castro (Castro Neto); o filho de Themístocles (Marco Aurélio); e o filho do prefeito Dr. Pessoa (Pessoinha). Na Câmara Municipal, duas pessoas herdaram o capital político de seus progenitores: Fernanda Gomes (filha do deputado Evaldo Gomes) e Venâncio Cardoso (filho da deputada Flora Izabel).

Para o pesquisador Ricardo Arraes, essa prática tem raízes históricas onde o patriarcalismo sempre reservou “cargos” dentro da sociedade para seus filhos. “Sempre reservava-se um filho para as letras, outro para a política e outro para a área jurídica. Sempre cargos masculinos”, diz. Nas composições da Câmara Federal e do Senado, observa-se que o hábito se manteve de geração para geração. “Na Câmara você encontra os filhos, sobrinhos e esposas”, observa o historiador. “No senado, você vai encontrar os pais – no caso do Piauí, a mãe”.

“A política é a mais nobre das missões e a mais vil das profissões”, diz o estudioso citando Aristóteles. Ele ressalta que a manutenção do poder político está extremamente ligada à relação que os políticos fazem entre o público e o privado, entendendo a política como profissão – quando, na verdade, o cargo político deveria ser uma missão exercida por determinado período. 

 

Sobrenome x partido político

O sociólogo  Germano Lúcio, em sua dissertação ‘Familismo político: Manutenção e reprodução da herança política na Alepi’ destaca que  há presença do familismo político em mais de 80% dos partidos na Alepi. Ele evidencia que o espectro ideológico transcende o partido, e que a principal unidade política representativa é a família. “O partido é acessório”, observa. “É mecanismo de legitimidade e legalidade do acesso com vistas à consolidação da manutenção e reprodução da herança política”. De acordo com o levantamento feito por sua pesquisa, o  Partido dos Trabalhadores (PT)  é o que possui a menor ocorrência na taxa de herdeiros políticos entre os anos 1986 e 2014.

O sociólogo explica que a herança familiar, no geral, configura-se de duas maneiras: a herança direta, cujo herdeiro tem laço de parentesco consanguíneo com o ascendente; e a herança transversal, do tipo que não se assenta apenas na consanguinidade, mas é caracterizada pela família ampliada constituída pela parentela, composta por cônjuges, agregados e afins (genro/nora, sogro/sogra ou cunhado/cunhada). No entanto, repousa igualmente no prestígio, capital político, econômico e social vinculados aos respectivos troncos político-familiares aos quais pertencem – valendo o sobrenome muito mais do que o partido político no qual está inserido. 

 Um dos troncos político-familiares emblemático no Piauí é o da família Nunes Brandão, um dos mais longevos e exitosos quanto à manutenção da herança política na Alepi. Por todo o período de tempo em que o ascendente assumiu e transmitiu a herança não houve um único pleito em que a hereditariedade fosse interrompida. O patriarca Wilson de Andrade Brandão elegeu-se de forma ininterrupta de 1966 a 1986, completando duas décadas de mandato legislativo. Sua cadeira no legislativo foi passada para o filho Wilson Nunes Brandão, já na eleição de 1990, cujo mandato permanece até então. Somados, são mais de 50 anos de familiarismo político – por herança transversal, sua esposa Betinha Brandão, atualmente é vice-prefeita do município de Pedro II.  

Outra família que possui uma herança política exitosa no estado é a família Martins. A herança perpassou a arena política e alcançou outras instâncias como o Tribunal de Contas do Estado – sua história teve início ainda no século XIX.  José Martins de Sousa, em 1836, ocupava dois cargos públicos de notória influência a época: o de prefeito de Parnaguá, então um dos maiores municípios da província – indicado por um tio com base na “Lei dos prefeitos”; e o cargo de “diretor dos índios” do Piauí – cargo de extrema envergadura, pois visava estabelecer o completo domínio do território e ampliar a presença do estado. O tio em questão era Manoel de Sousa Martins – o visconde da Parnaíba, que você deve conhecer pelo nome da avenida. Ele foi a maior expressão política de um dos troncos familiares que dominaram o sul do estado no século XIX. Do ramo desse tronco familiar, na história recente muitos descendentes estiveram ocupando espaço do poder político no Piauí nas esferas federal, estadual – extrapolando as fronteiras do campo estritamente político, e adentrando, inclusive, órgãos de controle. 

 

De marido à esposa

Não há como falar de história política sem falar de ao menos metade da população e dos eleitores: as mulheres. No estudo da ONG Transparência Brasil, os jovens herdeiros com menos de 40 anos e no primeiro cargo eletivo compunham 70% da Câmara de Deputados. Quando o estudo focou na faixa etária de menos de 30, o percentual subiu para 78%. Além desse perfil de jovens herdeiros políticos, o impacto dos laços parentais é mais acentuado entre as mulheres – a frequência é de 58% na Câmara e no Senado chega a 91%. 

No Piauí, o historiador Ricardo Arraes aponta que as mulheres atualmente representam 1/3 da Assembleia Legislativa. Um desavisado pode achar que o Piauí é um exemplo de representação política feminina – no entanto, a história de cada uma delas revela uma herança política familiar. “Todas são esposas de prefeitos, deputados, senadores e do governador”, observa. “Elas não se inserem na política, elas são inseridas”.

Já para a cientista política Bárbara Johas, mesmo utilizando-se da herança política para lograr êxito nas eleições, a inserção das mulheres na política é um ponto positivo, uma vez que o patriarcado impõe certa resistência da população em votar em mulheres. Aproveitar-se dos laços familiares, portanto, pode ser uma estratégia para romper essas desigualdades nos espaços de poder.

A pesquisadora em gênero destaca ainda que, considerar a inserção da mulher na política motivada apenas pelo vínculo matrimonial – negando o protagonismo de políticas democraticamente eleitas – é uma forma de também reproduzir o machismo. “Não podemos afirmar que essas mulheres não têm autonomia nos seus mandatos e estão representando apenas seus companheiros, pois ninguém questiona se os filhos que também herdam essa cadeira política são apenas figurantes de seus pais”, compara. No mundo ideal, para ela, as não seriam impostas às mulheres tantas barreiras para ocupar cargos públicos – assim elas poderiam concorrer em igualdade com os homens.

 

Renovar é possível

O descontentamento da população com a herança política traz, a cada nova eleição, o discurso de renovação entre os candidatos ao pleito. Mas, para Arraes, a renovação só acontece através da reeducação dos eleitores – um processo difícil por causa da desigualdade econômica, social e política. “Temos um eleitorado carente do apoio do estado”, avalia. “Quando chega no período eleitoral, o eleitor tenta tirar tudo aquilo que precisa”.

Para o historiador, o primeiro erro é o eleitor buscar receber um benefício individual, uma vez que a política representa interesses coletivos. O segundo, é devolver a benesse em voto. “Não julgo quem recebe, mas acredito que poderia receber e não votar no candidato que comprou o voto”, diz. 

A mudança geracional na política é necessária para que a democracia seja exercida, mas a renovação política passa por uma reeducação geral de eleitores. Pesquisas recentes apontam que 96% dos brasileiros não se sentem representados pelos políticos em exercício no país. Esse é o tamanho da dita “crise de representatividade” no Brasil – e o Piauí segue a linha. “A gente precisa de uma nova geração de políticos que acreditem que a política serve para servir o cidadão, e não para se servir dele”, finaliza Arraes.  

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Categorias: Especial

1 comentário

George Wellington · 7 de dezembro de 2021 às 20:38

Parabéns pelo artigo.

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