sábado, 23 de novembro de 2024

Me chame pelo meu nome

Altos valores no setor privado e lentidão no serviço público afastam população trans do acesso à retificação do nome social

15 de setembro de 2021

Edição Luana Sena

Leonna sabia que era Leonna antes mesmo de ter um documento em mãos que afirmasse isso. No entanto, quando a Lei de Utilização do nome social foi sancionada em 2009 no Piauí, tratou de tirar sua Carteira de Nome Social para poder ser identificada pelo nome que escolheu em locais públicos.

 No início, mesmo com a lei, Leonna conta que houve muita dificuldade por parte dos estabelecimentos para aceitar o documento. Ela relembra que chegou a discutir em uma agência bancária de Teresina quando uma funcionária resistiu em chamá-la de Leonna na frente das pessoas presentes. “Você está vendo uma mulher ou um homem na sua frente? Me chame pelo meu nome”, gritou diante da situação.

Em 2021, Leonna completa três anos com todos os documentos retificados. Em 2018 o Supremo Tribunal Federal derrubou a obrigação de cirurgia de redesignação sexual e apresentação de laudos, além da solicitação judicial para a mudança de nome e gênero nos registros pessoais. Antes, para conseguir modificar o seu nome social nos documentos, uma pessoa trans precisava apresentar todo esse relatório e entrar com uma ação na justiça – podendo ter o pedido negado. 

A conquista ainda lhe emociona, diz. Ao puxar sua identidade quando solicitada em atividades simples como ir ao supermercado ou comprar uma roupa, o ato a faz se sentir invencível e realizada. Dizer o nome em voz alta, para ela, também é uma conquista. “Eu quero ser percebida. Eu mereço ser percebida”, ressalta. 

O sentimento de alívio e vitória vivido por Leonna ao ter o nome retificado, entretanto, não faz parte da vida de uma grande parte da população trans no Piauí. Isso porque, segundo o advogado Miguel Cardoso, os processos para mudança de nome de documentos como Certidão de Nascimento, Registro Geral (RG) e Carteira Nacional de Habilitação (CNH) ainda são muito caros para o poder aquisitivo da maioria das pessoas trans, que correspondem majoritariamente a jovens desempregados e dependentes de suas famílias. 

Miguel detalha que todo o processo pode demorar em torno de dois meses – ou mais, dependendo do funcionamento de alguns setores afetados pela pandemia da Covid-19 – e custa em torno de R$300 reais. “Mas, para pessoas que moram fora de Teresina, pode custar ainda mais caro, tendo em vista algumas taxas cobradas em cartórios que não ficam localizados nas capitais”, complementa. 

Como alternativa, a Defensoria Pública do Piauí (DPPI) oferece gratuitamente atendimentos para custear a população que não tem condições de fazer o pagamento das taxas. No entanto, a demanda é muito grande, tornando o processo mais lento e fazendo com que muitos deixem de usar o serviço. 

Aliado a isso, a falta de informação sobre o assunto faz com que parte da população trans não acesse os seus direitos. O advogado destaca que é importante uma melhor publicização das leis asseguradas no âmbito municipal, estadual e federal. Entre elas, a decisão Supremo Tribunal Federal (STF), que permitiu a partir de 2018 que transexuais e transgêneros possam alterar seu nome no registro civil sem a necessidade de realização de cirurgia de mudança de sexo. 

Apesar de positiva, a decisão é vista como frustrante para Miguel, um homem trans, uma vez que se trata de uma decisão do poder judiciário, podendo ser alterada a qualquer momento. “Essa função cabe ao legislativo”, diz. “É como se a gente não tivesse um órgão capaz de garantir um direito mínimo fundamental”, destaca, ressaltando que, por conta da decisão, foi o primeiro advogado do Piauí a ter o nome retificado na carteira de identificação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). 

Com nome, endereço e carteirinha

“Me sinto um peixe fora do aquário, dá pra ver”, a cantora e compositora Liniker fala na canção “Sem nome, mas com endereço” sobre ser uma pessoa trans na sociedade e se sentir invisível no campo social, político e do afeto. 

A discussão da retificação do nome é, acima de tudo, sobre reafirmação da dignidade e cidadania das pessoas trans, destaca Robert Brandão, ao concordar com a canção. Com a documentação retificada, aos 21 anos, ele conta que conseguiu a carteira com nome social antes, ainda em 2016. “A gente ganha um direito assegurado pela lei, é um respaldo muito importante”, ressalta. “É uma forma de validar que o meu outro nome não vale tanto assim, é uma certeza de que mereço os direitos das minhas escolhas”, finaliza.

Atualmente, em torno de 300 pessoas no Piauí já foram contempladas com as identificações de nome social. É o que aponta o Centro de Referência para Promoção da Cidadania LGBT (CRLGBT), responsável pela emissão da identificação desde 2010, gratuitamente. A entidade declarou que ainda há dificuldade de acessar a população que não mora na capital e tem problema com deslocamento, mas que estão sendo feitos trabalhos itinerantes nos municípios para realizar as emissões. “Parece um número pequeno, mas há uma grande luta para poder levar essa informação a todo o estado”, explica Joseane Borges, gerente de enfrentamento à LGBTfobia do CRLGBT.

Ainda segundo Miguel, as carteirinhas com nome social possuem uma função, mas elas devem ser remodeladas, uma vez que não contemplam as pessoas não-binárias – aquelas que não pertencem a um gênero exclusivo. Segundo ele, pessoas que se consideram não-binárias estão sendo barradas de realizar a emissão do documento. O advogado aponta falta de informação e conscientização dos órgão competentes, uma vez que o termo trans é muito abrangente e também abarca os não-binários. “É uma luta que ninguém fique de fora”, finaliza o advogado. 

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Categorias: Reportagem

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