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Meu nome agora é cientista!

Carlos Eduardo, o Dadinho, cresceu em uma comunidade sem acesso a energia e internet: hoje coleciona medalhas na computação

25 de junho de 2021

No Sudeste do Piauí, entre a vegetação seca da caatinga marcada pela escassez das chuvas, toda água é uma benção. Não por acaso, as pequenas “aguadas” – as áreas baixas onde se acumulam poças que servem de fonte de vida para o pasto e a pouca vegetação – denominaram um dos maiores territórios quilombolas do país: o quilombo Lagoas

Foi de lá, mais precisamente da Lagoa do Cipó – uma de 60 localidades todas com nome de Lagoa – a 30 km de São Raimundo Nonato, que um menininho curioso, chamado de Dadinho pelos colegas e familiares, decidiu sonhar mais alto que as pedras e baixões que preenchem a paisagem da Serra da Capivara –  o parque nacional que fez o município ficar famoso e ser reconhecido internacionalmente como o berço do homem americano. 

Apesar de ter um patrimônio da humanidade praticamente no seu quintal, a janela para o mundo de Dadinho – de batismo, Carlos Eduardo Santana – é mesmo a tela de um computador. É na frente desse instrumento que o jovem de 21 anos passa, hoje, a maior parte do tempo. Mas nem sempre foi assim. Durante a infância e adolescência ele viveu com a avó e a tia materna na comunidade quilombola onde sequer tinha energia elétrica. A chegada da luz, e também da internet, foi um catalisador na vida de Dadinho.

Lagoa do Cipó: comunidade quilombola não tinha energia elétrica até 2011. (Foto: arquivo pessoal)

De infância simples, no semiárido, o foco sempre esteve nos estudos. Brincava e ia à escola, alheio aos gamers e as mais recentes novidades tecnológicas que marcaram muitos de sua geração. Estudar sempre foi uma condição imposta pela família. “Elas me incentivaram para que eu focasse nos estudos, ou não teria um futuro legal”, nos conta por telefone.

Carlos Eduardo concluiu a educação básica em escola pública da região. Prestes a iniciar o ensino médio, decidiu tentar uma vaga no Instituto Federal do Piauí – o IFPI, no campus de São Raimundo Nonato. “Sempre ouvi falar da qualidade do ensino lá”, diz. “Fiz o teste seletivo para o curso técnico em computação com interesse em cursar o ensino médio”. 

Aprovado, Carlos passou a percorrer 60 km todos os dias para ir e voltar às aulas na cidade. Como muito municípios brasileiros, São Raimundo nasceu em torno de uma igreja – e, como grande parte do Nordeste, antes de se tornar uma cidade o local era uma fazenda, atribuída a Domingos Afonso Mafrense. Doada aos jesuítas após a morte do fazendeiro, a região – habitada por povos indígenas, quilombolas, religiosos e aventureiros – foi elevada à condição de cidade pela lei estadual nº 669, em 26 de junho de 1912. 

O IFPI de São Raimundo Nonato existe apenas há 11 dos 109 anos de existência da cidade: em fevereiro de 2010, o primeiro campus da região foi inaugurado e levou ensino técnico de administração, gastronomia, física, matemática e também informática, – está última, a grande paixão de Dadinho. Mais de 800 alunos já passaram por aquelas salas – um deles foi o jovem que, inicialmente, confessa, nem tinha interesse na área de programação e tecnologia. “Eu nem conhecia”, revela.

O interesse foi despertado por um de seus professores, Dann Luciano de Menezes. “Ele me apresentou o mundo da programação”, relembra hoje. “Me passou coisas e conteúdos para estudar por fora”, conta em tom de gratidão. “Antes de conhecê-lo, meu sonho era apenas ter uma formação superior”. 

Dann Luciano é um programador descrito pelos amigos como excelente. Entre os alunos, para quem ministra disciplinas de informática, é querido por estar sempre por dentro das novidades em tecnologia. Foi ele quem percebeu em Carlos um perfil curioso para além do normal – característica que julga essencial para quem quer seguir carreira nessa área. “Com 14 anos ele hackeou a rede social de uma pessoa aqui no campus para conseguir pontuações em um jogo”, relembra para nossa reportagem. “Ele sempre foi motivado, competitivo, fã de desafios, e essa é uma das principais qualidades que enxergamos nele”. 

 

Carlos e Dann: de aluno a inspiração (Foto: arquivo pessoal)

 

Em 2015, quando abriram as inscrições para a Olimpíada Brasileira de Informática, Dann convidou Eduardo para participar. A partir dali, a saga de competições e medalhas não pararia: em 2016 ele chegou à primeira medalha, de honra ao mérito, por ficar em 24º entre os competidores de todo o país. No mesmo ano viria a medalha de ouro na Olimpíada Brasileira de Matemática. 

Em 2017, Carlos Eduardo seria reconhecido como a melhor pontuação na Olimpíada Brasileira de Informática por um aluno de escola pública. Pelo resultado, o medalhista de prata ganhou bolsa de estudos em um preparatório específico para esse tipo de competição na cidade de Fortaleza – foi a primeira vez que Dadinho viajou de avião e viu o mar. 

 

Jornada de sucesso e medalhas pelo país (Foto: arquivo pessoal)

 

Os prêmios continuaram seguindo em 2018, 2019 e 2020 – Carlos Eduardo foi finalista em todas as edições e acabou conhecendo um pouco mais do Brasil em viagens para estados como Bahia e Paraíba, onde aconteceram algumas finais. Ao lado dele sempre estava, orgulhoso, o professor Dann. De inspiração, o mestre virou aprendiz: se espelha na motivação e empenho do rapaz. “Eu acredito que ele tem condições de alcançar coisas que eram inimagináveis para mim”, reflete. “Tive minha educação toda em escolas privadas, vim da capital, mas tive barreiras e limitações que ele consegue quebrar todas”, compara o professor. “Não tenho dúvidas de que, se ele quiser, conseguirá emprego nas melhores empresas da área de tecnologia do mundo”.

 

Do sertão para o cerrado

“No mundo da tecnologia, se você ficar parado, ficará desatualizado”, ensina Carlos. O movimento e a busca por aprendizado frequente o levou a correr atrás de um futuro que, para quem nasceu em Lagoa do Cipó há pouco mais de duas décadas, seria impensável. Hoje, está cursando o 6º período de Ciência da Computação na Universidade Federal do Piauí – agora de forma remota, por conta da pandemia. Dadinho chegou a ser aprovado na Unicamp, numa modalidade de ingresso para medalhistas das OBI, mas optou por permanecer na capital do Piauí, deixando Campinas apenas para visitas técnicas e treinamentos para as olimpíadas – sempre a convite da instituição.

Agora Carlos vive em Brasília – ele migrou para a capital federal em busca de mais estrutura e oportunidades para estudar e trabalhar. Atualmente faz estágio como engenheiro de software na VTEX, uma renomada startup brasileira. Após participar de uma maratona de programação e ser um dos finalistas, ele foi convidado pela própria empresa para o programa de estágio – as vagas costumam ser disputadas por pessoas de vários países, e Carlos conseguiu uma delas. “Ao concluir os três primeiros meses , fui convidado a continuar estagiando até o final do meu curso”, conta empolgado.

“O que eu quero agora é aprender ainda mais, entender melhor sobre esse mercado de trabalho, me formar e me tornar um programador mais experiente”, diz, fazendo planos. Na capital federal, ele vive com a mãe biológica, Gerli – mas lá de Lagoa quem se orgulha da trajetória do curioso Dadinho é sua tia-mãe de criação, Elisângela: “Sempre mostrei pra ele que o estudo é a porta de entrada para o sucesso e ele, sempre muito obediente, acolheu esses conselhos e buscou seguir seu próprio caminho”, comenta. Do cerrado, ele avista um futuro tão bonito quanto as serras de sua terra natal: e a saudade que enche o peito é a certeza de que, logo mais, irá voltar.

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Categorias: Experiência

Luana Sena

Jornalista, mestra e doutoranda em comunicação na Universidade Federal da Bahia.

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