sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Mulheres pelo direito à vida

No Brasil, aborto é mais frequente entre mulheres pobres, negras, indígenas e nordestinas

28 de setembro de 2021

Alvo de polêmicas no campo da política e da sociedade, o aborto é um tema de saúde pública que, para especialistas, precisa ser discutido com urgência no Brasil – principalmente sob a ótica da garantia dos direitos reprodutivos das mulheres. O dia 28 de setembro se instaurou como Dia da Luta pela descriminalização do aborto na América Latina e Caribe. Por ser uma prática considerada ilegal em diversos países e feito de maneira clandestina, o procedimento é uma das principais causas da mortalidade materna, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

A cada uma hora, 57 mulheres realizam aborto no Brasil. Fonte: Pesquisa Nacional do Aborto

Para Teresa*, mulher negra de 18 anos, o aborto custou sua própria vida. Empregada doméstica e mãe de uma criança de dois anos e seis meses, passou por dois processos abortivos, ambos tomando a mesma dose de medicamento. 

Na primeira vez, mesmo sem complicação, precisou fazer uma curetagem uterina – um procedimento realizado pelo ginecologista com o objetivo de limpar o útero através da remoção de resquícios de um aborto incompleto. Na segunda ocasião, ocorrida no ano passado, a adolescente ficou aguardando o início do sangramento vaginal por três ou quatro dias. Durante esse tempo, sentiu cólicas mais fortes que na vez anterior, o que a fez procurar o serviço médico de urgência, acompanhada da mãe e do parceiro. 

Ao ser atendida, recebeu uma prescrição de analgésico e a sugestão para procurar o pré-natal. “Eles falaram que se tratava apenas de uma ameaça de aborto, com feto vivo e normalzinho, pela ultrassonografia”, relembra a mãe que pediu para não ser identificada.

Uma semana se passou entre a consulta na urgência e o início de sangramento intenso e sintomas de febre. A jovem retornou ao hospital. A gravidez foi mantida, apesar do agravamento do quadro clínico. Duas semanas mais tarde, ela foi encaminhada para a UTI, onde permaneceu por um mês, sem nenhuma melhora clínica. Após 45 dias de internação, a adolescente morreu por sepse, uma reação exagerada do organismo a uma infecção, prejudicando o funcionamento de seus próprios tecidos e órgãos. “Os quatro comprimidos custaram R$250,00, metade do meu salário”, conta sua mãe. “Mas também custou a vida da minha filha”, lamenta.

Fonte: Instituto Bioética

De acordo com levantamento feito pelo G1, através do DATASUS, em 2020, o número de procedimentos realizados pelo sistema de saúde devido à abortos malsucedidos – sejam eles provocados ou espontâneos –  foi 79 vezes maior que o de interrupções de gravidez previstas em lei. De janeiro a junho, o SUS fez 1.024 abortos legais em todo o Brasil. No mesmo período, foram 80.948 curetagens e aspirações. Esses dois procedimentos são mais frequentes quando a interrupção da gravidez é provocada – a necessidade de realizá-los costuma ser menor em caso de abortos espontâneos.

No Piauí, de acordo com dados da Secretaria Estadual de Saúde – Sesapi, solicitados pelo oestadodopiaui.com, foram contabilizados 1.703 abortos entre janeiro e julho de 2021. Em Teresina, na Maternidade Evangelina Rosa, até o final do mês de agosto foram realizados 243 procedimentos de curetagem.  Dados divulgados pelo DATASUS contabilizam 261 processos de curetagem e aspirações somente em julho de 2021 no Piauí. O número pode ser ainda maior, já que muitos abortos acontecem de forma clandestina e sem que as mulheres recorram ao sistema público de saúde.

Entre os casos invisíveis ao estado está o de Laura*, uma jovem negra, que aos 22 anos se sentiu coagida a realizar um aborto. Aos 18 ela teve o primeiro filho e, com 22, envolvida em outro relacionamento, descobriu que estava grávida novamente. Sem emprego e morando na casa de parentes do namorado, se viu sem saída. “Eu tive meu primeiro filho e quando engravidei já estava terminando o relacionamento, o pai biológico se afastou e não chegou nem a registrar a criança”.

Ela conta que a decisão de realizar o aborto é extremamente difícil para a mulher. Não tinha ninguém ao seu lado e sentia-se sem condições de criar mais uma criança. “Me vi sozinha”, desabafa.

Sequelas psicológicas 

Interromper a gravidez sem o respaldo de um acompanhamento médico pode deixar sequelas não apenas no corpo: traumas psicológicos costumam acompanhar procedimentos mal sucedidos. Laura relembra que, por pouco, o excesso de sangramento não custou sua própria vida. “Passei semanas sangrando e me recusava a ir ao médico por medo e vergonha de contar o que tinha acontecido e ser julgada pelas pessoas”, relembra. “Foi muito triste e fiquei bastante abalada”, narra com a voz embargada.

Angústia, alto grau de depressão e transtornos mentais são, segundo especialistas, as marcas cravadas na alma que podem aparecer de imediato ou anos depois, na maioria dos casos. Para a psicóloga Thayse Teixeira, as sequelas de um aborto, seja induzido ou não, trazem um impacto muito grande na saúde mental da mulher. 

Em um dos casos acompanhado pela psicóloga e um psiquiatra, uma mulher que havia realizado aborto lesionava partes do seu corpo, afim de tentar se auto punir pelo ato. “A família te culpa, a sociedade discrimina, a própria lei te incrimina”, explica Thayse. “A culpa vem a partir desses julgamentos”.

A psicóloga relembra um caso recente em que uma jovem de 14 anos, vítima de estupro, teve o aborto negado na Justiça – e ainda foi exposta pela própria juíza, com a sentença espalhada em grupos de WhatsApp. “Nessa idade é uma fase de desenvolvimento maturacional, o aborto significa uma tentativa de resgatar os sonhos, uma salvação diante de um estupro”, diz a psicóloga. “Mesmo previsto em lei, essa criança teve que passar por todo esse abalo psicológico e pelo julgamento de pessoas que deveriam defendê-la”, pontua. 

88% das mulheres que realizam aborto fazem parte de uma religião – Fonte: Instituto de Bioética

Aborto é mas frequente entre negras, indígenas e nordestinas

Um relatório realizado pelo Instituto de Bioética aponta que mulheres de todas as idades, classes e origens realizam abortos. No Brasil, a experiência é mais frequente entre mulheres pobres, negras, indígenas e nordestinas. Elas formam também o grupo mais vulnerável a procedimentos clandestinos e inseguros. Em números, 15% das mulheres negras e 24% das mulheres indígenas já fizeram um aborto na vida, comparadas a 9% de mulheres brancas. 

A pesquisadora Fernanda Lopes, participante do relatório do Instituto, explica que o maior risco de abortos induzidos é observado no Nordeste, no Norte e no Centro-Oeste – regiões onde é mais limitado o acesso aos serviços de saúde, ao aconselhamento em saúde sexual e reprodutiva e aos contraceptivos modernos. No Nordeste, por exemplo, a proporção de mulheres negras dobra quando comparada ao dado nacional relacionado à realização de aborto inseguro.

Segundo o artigo 128 do Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, o aborto é considerado legal no Brasil quando a gravidez é resultado de abuso sexual ou põe em risco a saúde da mulher. Em 2012, um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que é permitido interromper a gestação quando em caso de feto anencéfalo.

A Organização Mundial da Saúde define aborto como a interrupção da gestação com a extração ou expulsão do embrião, ou do feto de até 500 gramas antes do período perinatal (que data entre 22.ª semana completa e os 7 dias completos após o nascimento). Partindo de uma classificação médica, o aborto pode ser precoce, quando ocorre antes da 13ª semana de gravidez, ou tardio, entre a 13ª e a 22ª semana. De acordo com o médico Luís Rey, o procedimento deve ocorrer antes que o feto seja viável, isto é, o nascituro não consegue sobreviver ainda fora do útero, após esse período denomina-se parto prematuro.

Países que descriminalizaram o aborto reduziram taxas – Fonte: Instituto Bioética

A Argentina aprovou em 2020 o projeto de lei para legalizar o aborto no país. Em contraponto, o Brasil está entre os países com a segunda legislação mais proibitiva do mundo. Segundo dados da ONG Center of Reproductive Rights (CRR), atualmente são 67 países que permitem a interrupção da gravidez.

*Nomes alterados para preservar a identidade das fontes.

 

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Categorias: Reportagem

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